O psicanalista do Brasil

Freud começou por se interessar na carreira de pesquisador, analisando ao detalhe o sistema reprodutor das enguias e o efeito terapêutico da cocaína
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Há quem descubra a vocação tarde, há quem a encontre mais cedo. Sergio Moro, a personagem do ano de 2014 e de 2015 para boa parte das publicações brasileiras, ao que tudo indica, pertence, ao contrário do génio austríaco, ao segundo grupo.

O juiz de 43 anos que se ocupa da Operação Lava-Jato é obcecado desde, pelo menos, os 30 anos pela Operação Mani Pulite (Mãos Limpas), a ação policial que derrubou o sistema político tradicional italiano nos anos 90, investigando quatro ex-primeiro-ministros, centenas de parlamentares e milhares de empresários, levada a cabo por jovens magistrados – tão jovens como Moro e seus pares hoje no Brasil. Há até perfis publicados do super discreto Moro a afiançar que os volumes da Operação Mani Pulite habitam a sua mesa de cabeceira, como a Bíblia ou o Alcorão a de milhões de fiéis.

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Sérgio Moro[/caption]

Em paralelo, o juiz é devoto de Stephen Trott, o homem que nos EUA mais e melhor desenvolveu o instituto da “delação premiada” – testemunhas falam o que sabem em troco de redução de pena.

Tudo isso está escrito e documentado em ensaios e artigos publicados por Moro ao longo da carreira. A Lava-Jato nasceu no início de 2014 mas estava a ser gerada na cabeça do juiz nascido em Maringá, capital do estado do Paraná, há 10 ou mais anos.

E, de facto, se ainda não chegou aos números extraordinários da Mani Pulite, já prendeu vedetas da banca, magnatas da construção, ex-políticos e até um senador, apesar de gozar de foro privilegiado por estar em funções. Delcídio do Amaral, do PT, foi preso porque, numa gravação de telemóvel feita às escondidas pelo ator profissional Bernardo Cerveró, combinou a fuga de um dos delatores da operação, Nestor Cerveró, o pai de Bernardo, numa cena digna de filme.

Nestor que, de uma assentada, no acordo de delação premiada que estabeleceu com Moro, citou pela primeira vez no caso o nome de Lula da Silva. E até o de Dilma Rousseff. Mais: envolveu o governo de Fernando Henrique Cardoso no escândalo em torno da Petrobrás. Fora o de Collor de Mello, mas esse não surpreende ninguém. Ou seja, quatro presidentes, uma em funções, só numa delação.

Os presidentes das duas casas parlamentares, Eduardo Cunha (Câmara dos Deputados) e Renan Calheiros (Senado), e o vice-presidente Michel Temer também vêm sendo investigados pela polícia ou, pelo menos, nomeados por delatores.

Todo o poder - banca, empresários, funcionários públicos, organizações políiticas, deputados, senadores, governadores e presidentes – estão deitados num enorme divã. Moro tem ido além da consciência: está a chegar à alma da corrupção enraizada no país, a remexer as profundezas de um trauma com cinco séculos, a penetrar o inconsciente coletivo brasileiro. Talvez Moro, como Freud, afinal se esteja a revelar tardiamente um psicanalista. O psicanalista do Brasil.

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