O que é que não se compra?

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Nada. Está tudo à venda e parece que não há mal nisso. Coisas, situações, relações, sensações e até embriões. Desde que todas as partes estejam de acordo, que ninguém se magoe, é vender e comprar que o mercado regula-se, os Estados legislam e o dinheiro multiplica-se.

Educar assim é difícil. Hoje riqueza não significa dinheiro em excesso, não significa iates, segundas casas, carros topo de gama, viagens de luxo - riqueza já não é sinónimo de luxo. Riqueza quer dizer que se consegue ter acesso a cuidados de saúde de qualidade, a ensino de qualidade, a casas dignas em locais privilegiados. O meio termo está a acabar: ou tudo ou quase nada. O dinheiro tem cada vez mais importância e a sua importância torna-o um fim em si mesmo, não por uma questão de capricho, de ambição ou futilidade mas de necessidade primária. Ser hippie e simples não vale, é impossível. Só com financiamento de terceiros (normalmente avós ou tios).

Por cá temos o Estado Social, moribundo é certo, mas ainda se consegue sobreviver à custa dos impostos dos outros, das gerações anteriores e com os empréstimos através dos quais os vários governos vão comprometendo as gerações que vão nascendo cada vez mais endividadas. E o retrocesso deste Estado Social, assim como a importância crescente do dinheiro, sufocam.

Educar assim não é fácil. Tudo custa e por isso tudo nos custa. Sair de casa sem um tostão é impensável. Ninguém chega a pé a lado nenhum, são cada vez menos os que chegam às melhores universidades oriundos de meios desfavorecidos, a internet custa, não basta o papel e o lápis para estudar ou chegar à idade adulta sem ter tido "uma experiência internacional", assim como o Inglês extra, o desporto extra, as aulas de música extra. Ser rico é conseguir pagar tudo isto. Isto e os dentistas, os óculos, as terapias da fala, as fisioterapias ou a pias que todos os pais acabam por ter de pagar mais tarde ou mais cedo.

Sempre foi assim, dizem. Nem sempre: nas últimas décadas, as desigualdades diminuíram, a massificação no ensino, o acesso aos cuidados de saúde dignos era crescente, o elevador social parecia querer finalmente arrancar. A condição social em Portugal não era (e ainda não é) um fado. Mas cheira a fim de ciclo, a fim de Estado Social. Assistimos a um retrocesso acelerado em todas as áreas e as desigualdades crescem. E num mundo em que a sociedade é um mercado, uma mega feira, quem não tem dinheiro não tem vícios. Nem filhos.

Se há uns anos fazia sentido dizer que é só pôr mais água na sopa porque não faz assim grande diferença o número de filhos, hoje não faz sentido dizer a mesma coisa. Hoje o número de filhos faz mesmo diferença. Tudo custa e não há descontos de quantidade. Sim, claro que a economia de escala numa família ainda funciona, as roupas passam de uns para os outros (nem todas), não se alimentam as crias a bifes de lombo e o Passe Família impediu que cerca de 30 famílias numerosas das áreas metropolitanas caíssem na miséria (as outras já lá estavam). Mas são cada vez menos as coisas que não custam dinheiro; e quanto mais filhos, mais dinheiro.

Hoje, ter muito filhos é sinal de riqueza ou de abnegação; de dinheiro ou de sacrifício; de conforto ou de risco. Cada vez mais. Seguros de saúde para uma família de seis, passe, casa com três quartos numa zona segura e bem servida de transportes, dois carros, uma viagem por ano, um cão, colégios para os quatro filhos, internet, computadores, serviços domésticos, dentista e óculos, terapias, atividades extra. Não, não é uma família da classe média. Falhando a escola pública e o SNS não é uma família da classe média. Quanto mais filhos, menos escolhas.

E esta é uma condição social e moralmente aceitável porque está baseada na liberdade de escolha: quem não quer, não tem muitos filhos e fica com mais dinheiro para dar mais e melhor aos poucos que tem.

Queres, pagas. Tudo custa e uma família numerosa é um bem de luxo.

Numa sociedade a definhar, ter muitos filhos e conseguir sustentá-los é o maior sinal exterior de riqueza. E porquê? Porque numa sociedade sem valores, em que não há mal nenhum em que tudo tenha um preço, um filho é só mais um bem. Cada vez mais escasso.

Jurista

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