O tesouro que Cavaco não descobriu nas Selvagens

Publicado a

Na madrugada daquele dia 13 de Setembro de 1889 soprava um vento ligeiro de Nordeste e o navio sulcava a todo o pano as águas calmas do Atlântico. Há duas semanas que tinham largado de Inglaterra rumo a Sul e que não viam terra firme. Pressentindo o fim daquela primeira etapa da viagem, os homens andavam já na expectativa e empoleirado nos vaus reais, um deles tinha por única missão vasculhar qualquer sombra no horizonte.

No livro The Cruise of the Alerte, In Search of Treasure, o capitão Knight recorda uma manhã gloriosa, sob um céu azul salpicado de pequenas nuvens brancas esfarrapadas pelo vento. São oito e meia da manhã quando se ouve o grito esperado: "Terra à vista". Mesmo à proa, distante ainda de algumas milhas, uma sombra azulada interrompe a linha do horizonte: uma ilha que se sabe deserta. A Selvagem Grande, uma das três ilhas que constituem o pequeno arquipélago das ilhas Selvagens.

Oficialmente, o cúter Alerte, tem por destino o porto de Sidney, na Austrália. Mas na verdade, esse foi apenas um estratagema de Knight e dos seus patrocinadores para não divulgar o verdadeiro destino da expedição: a ilha brasileira da Trindade, onde tudo leva a crer que se encontre uma fortuna fabulosa enterrada. Mas então, porque é que Knight e os seus homens aportam às pequenas e esquecidas ilhas das Selvagens? A razão é simples: juntar o útil ao agradável. As Selvagens significam um pequeno desvio, apenas, do rumo até à costa brasileira e também aqui parece merecer credibilidade uma velha história que dá como certo que nestas ilhas se esconde um tesouro espanhol proveniente das Américas.

De resto, nos porões do Alerte, encontra-se tudo o que é preciso para procurar tanto um como dois tesouros: qualquer coisa como oito toneladas de ferramentas, que durante a viagem cumprirão igualmente a função de lastro: um complicado aparelho de perfuração, uma grua hidráulica capaz de içar até 12 toneladas, uma forja portátil, pás, picaretas e ferramentas de carpinteiro, tendas e arame farpado, até sementes para uma pequena horta de crescimento rápido. E espingardas de repetição Colt, algumas pistolas e um canhão utilizado na caça às baleias que não dispara apenas arpões, mas também projéteis a sério e de fragmentação. Todo o cuidado com potenciais expedições rivais é pouco e Knight está disposto a procurar o tesouro da Trindade até o encontrar ou até ficar convencido de que ele não existe. E, se pelo caminho, encontrar outro, melhor ainda.

Os primeiros a interessar-se e a levar a sério a alegada existência de um tesouro nas Selvagens foram os oficiais do Almirantado Britânico. Nos primeiros meses de 1813, chegara-lhes aos ouvidos uma rica história contada por um marinheiro, Christian Cruise, decidindo tirar a prova dos nove à história e ao marinheiro. A culpa era de uma providencial febre amarela que pouco antes tinha atirado com os costados de Cruise para um hospital em Santa Cruz, nas Caraíbas. E por um desses acasos do destino, encontrara na mesma enfermaria um espanhol com quem fizera algumas viagens ao serviço de um navio mercante holandês. Cruise, reza a história, cura-se da maleita, mas o marinheiro espanhol, de quem ninguém guardou o nome, não tem tanta sorte. Moribundo e às portas da morte, confessa-lhe um segredo bem guardado.

Corre o ano de 1804 e o navio onde o marinheiro espanhol presta serviço regressa a Espanha, vindo da América do Sul. Entre as mercadorias que enchem os porões, o comandante leva também à sua guarda várias arcas carregadas de prata - qualquer coisa que hoje poderia valer uns dois milhões de euros, dirão os mais otimistas. Tipicamente, como em tantas histórias de piratas e tesouros escondidos, o nome deste navio espanhol ou do capitão, parece que também ninguém se lembrou de registar. Mas adiante. O destino é o porto de Cádiz, mas a Espanha acaba de declarar guerra à Inglaterra e os ingleses patrulham as águas do estreito de Gibraltar até ao Cabo Finisterra, bloqueando todo o tráfego marítimo.

Perante uma tripulação já desesperada de tanto tempo no mar, o capitão espanhol toma uma decisão: regressar à América do Sul é impensável, mas ficar ali também. Resolve rumar às Índias Ocidentais, as Caraíbas, embora a tripulação esteja cada vez mais perto de se amotinar. Falta-lhes apenas um pretexto. Ou melhor, um alento. Que não tarda, quando ao sul da ilha da Madeira avistam um conjunto de pequenas ilhas, tudo indica que desabitadas, ainda por cima. Liquidado o capitão, desembarcam na "ilha central, alta, lisa e verde no topo". Na praia, acima da linha da maré alta cavam um buraco fundo onde enterram o tesouro de prata. Por cima, segundo o espanhol, depositam o corpo do capitão. Se alguém notasse a areia remexida e se lembrasse de cavar naquele sítio, depressa desistiria à vista do cadáver.

Por risco e conta própria, os espanhóis seguem viagem rumo às Caraíbas. O plano é arranjar um outro navio, de preferência de bandeira inglesa ou neutral, para voltarem ao local do crime, desenterrar a prata e ir cada um à sua vida afortunada. Mas como todos sabemos, um plano é apenas um plano. Por alturas da ilha de Tobago, com vento rijo e mau tempo, o navio desfaz-se em mil pedaços numa baía onde procura abrigo, deixando apenas dois sobreviventes que conseguem chegar a Santa Cruz ou St. Tomas. Um deles morre pouco depois. E anos mais tarde, morrerá o outro, numa cama de hospital, mas não sem antes deixar o segredo do tesouro das Selvagens a um colega de enfermaria - Christian Cruise.

Em 1813, o honesto Cruise embarca por ordem do Almirantado inglès a bordo do HMS Prometheus, comandado por Hercules Robinson, e com destino às Selvagens. Robinson aproveita a viagem de quinze dias para testar a credibilidade do marinheiro, mas não encontra nada de suspeito. Chegados, primeiro, ao Funchal, Robinson faz algumas diligências e dizem-lhe que anos antes, alguém terá retirado da ilha "duas caixas com dólares". A demanda parece prometer, mas não será desta. Chegados à Selvagem Grande, o cenário parece corresponder em tudo à descrição do malogrado espanhol, mas na praia, numa baía junto à ponta Leste, as seis dezenas de marinheiros bem se fartam de cavar para nada. Robinson chega à conclusão que a zona é demasiado grande, o tempo piora e decide regressar à Madeira. Na Marinha, os seus superiores nunca mais mostram qualquer interesse pelo assunto, mas Robinson ficará para sempre convencido que o tesouro das Selvagens é mais do que um moinho de vento. Regressou mais uma vez às ilhas, em 1856, desta vez em visita privada, ficando apenas na dúvida se, em vez de cavar as areias da Selvagem Grande, não deveria ter começado pela Selvagem Pequena.

Em Setembro de 1889, Knight acredita que a sua expedição é a primeira a demandar o tesouro das Selvagens desde essa primeira missão de Robinson, em 1813, às ordens do Almirantado. Mas engana-se, como depressa descobre, por um dos pescadores madeirenses que utilizam sazonalmente a ilha para salgar o peixe. Anos antes, segundo o português, tinham desembarcado ali outros ingleses à procura de um tesouro.

Na verdade, parece que antes da viagem do Alerte, e sem contar com as viagens de Robinson, outras duas expedições se tinham já dedicado a procurar a fortuna espanhola nas ilhas: pouco depois da primeira viagem do Prometheus, terá sido a vez de um tal capitão Mathew, comandante do Harriet, que pelo menos uma fonte dá como certo ter encontrado um esqueleto e uma moeda inglesa com a efígie de Jorge III enterrados na areia; e, entre 1848 e 1851, o capitão A. Mellersch, com a corveta Rattler. Um teimoso, este comandante Mellersch, que em quatro anos consecutivos se terá deslocado às Selvagens, desistindo das buscas apenas quando se convenceu que esta história do tesouro só podia pertencer ao reino da fantasia. Se ele, Mellersch não o tinha conseguido encontrar, era porque ele não existia.

Mas se a fé move montanhas, muito mais depressa move os homens. Knight decide concentrar as buscas na Selvagem Pequena, aquela que lhe parece corresponder melhor às descrições originais do marinheiro Cruise. Desembarca 16 homens com as respetivas ferramentas que durante três dias cavam em outras tantas praias, mas sem grandes resultados. A única coisa que encontram debaixo da areia é rocha. E umas ossadas que ainda ajudam a levantar o ânimo, mas que afinal são de baleia. O inglês não insiste. Afinal, o seu grande objetivo é outro tesouro e outra ilha. Na brasileira Trindade, as hipóteses de sucesso parecem-lhe muito mais credíveis e talvez seja conveniente não cansar desnecessariamente os homens num fugidio tesouro secundário. O Alerte levanta âncora para nunca mais voltar.

O tesouro das Selvagens, no entanto, continua a atrair a curiosidade e a vontade de pelo menos mais dois "caçadores". Um deles é o britânico Ernest Shackleton, o famoso explorador da Antártida, que em 1921, a caminho do Pólo Sul e a bordo do Quest, escala o porto do Funchal e pede ao então proprietário das Selvagens, Luís Rocha Machado, autorização para procurar o já tão procurado tesouro. Os lucros seriam divididos pela "sociedade" luso-britânica, garante Shackleton, e a busca teria início no regresso do Pólo Sul. O português terá acedido, mas Shackleton é que nunca chegou a pisar as Selvagens, vítima de um enfarte cardíaco na estação baleeira de Grytviken, na Geórgia do Sul, a 5 de Janeiro de 1922 e a caminho do Mar de Weddell.

Três décadas mais tarde, em 1951, terá tido lugar a mais recente e última busca nas Selvagens. Ou, pelo menos, era essa a intenção de Richard Pinney, com o seu navio a motor Barra, mas que não se sabe verdadeiramente se chegou a pôr os pés nas ilhas. Tal como Knight, o principal objectivo de Pinney era recuperar outro tesouro, noutra ilha, algures no Mar do Sul da China, e atribuído - um dos muitos - ao pirata William Kidd, o mesmo Capitão Kidd que em finais do século XVII corria os mares das Caraíbas e das Américas em busca de presas. Há até quem diga que o tesouro das Selvagens também tem a "mão" de Kidd.

Certo é que a lenda do tesouro das Selvagens deixou marca nas ilhas. Junto ao mar, há mesmo uma furna, ou gruta, vítima e testemunha da cobiça dos homens. Debaixo de água sobram ainda restos de motor e de máquinas utilizadas um dia para perfurar a "furna do tesouro" como alguns lhe chamam. Mas com tanta falta de perícia, que o único resultado de tamanha busca parece ter sido a destruição da gruta. Protegido por lei e transformado em Reserva Natural, o arquipélago guarda a lenda, mas, na verdade, é dono de outras fortunas. Naturais e únicas.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt