O 'uncanny valley', os assistentes de voz e o 'product-placement' de comportamentos sociais

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O conceito de "uncanny valley teve a sua origem na robótica e foi cunhado pelo japonês Masahiro Mori em 1970. Descreve a sensação sinistra ou perturbadora que os seres humanos experimentam ao observar entidades artificiais, como robôs ou personagens gerados por computador, que parecem quase humanos, mas que não alcançam um realismo convincente. Mori observou que, à medida que os robôs ou personagens animados se tornam cada vez mais parecidos com humanos em aparência e comportamento, há um aumento correspondente na sua aceitação e simpatia pelos seres humanos. No entanto, há um ponto em que a semelhança se torna muito próxima do humano, mas, não sendo completamente realista, resulta numa forte resposta emocional negativa, numa aversão e estranheza, denominada de "uncanny valley". Neste ponto, em vez de evocar sentimentos de empatia ou atração, a entidade artificial provoca sentimentos de desconforto, repulsa ou medo. Esse declínio na aceitação é referido como o "vale" na linha que traça a familiaridade ou semelhança humana em relação à resposta emocional dos seres humanos.

O uncanny valley tem implicações em várias áreas, incluindo robótica, animação, realidade virtual e gráficos por computador, revelando a importância de encontrar um equilíbrio entre realismo e estilização ao criar entidades parecidas com humanos para garantir que sejam esteticamente atraentes e emocionalmente envolventes para os seres humanos. Nos últimos anos, avanços na tecnologia têm procurado superar este problema. Uma dessas decisões foi a que o Bradesco tomou em 2021 quando decidiu que o seu assistente virtual de voz BIA (Bradesco Inteligência Artificial) passaria a responder de forma mais firme a insultos e formas de assédio a que estava exposto desde o seu lançamento em 2016.

O Bradesco é um banco brasileiro com um universo de mais de 102 milhões de clientes, e que criou uma assistente virtual de voz preparada para responder a questões sobre conteúdos financeiros, consultar saldos, e até fazer transações. A proximidade e habituação dos clientes da Bradesco à Bia foi aumentando à medida que a familiaridade com o assistente de voz crescia. Reflexo desta aproximação foi a transposição para o robô de comportamentos indesejados (palavras, gestos, atitudes, etc.) praticados em relação a pessoas. Estes comportamentos, a que podemos chamar assédio, tem como objetivo afetar a dignidade da pessoa ou criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Neste caso, a manifestação destas atitudes visava auscultar a forma como a assistente de voz reagia, usando um tom inspirado em práticas recorrentes entre (alguns!) humanos.

Inicialmente o Bradesco permitiu que o algoritmo respondesse de forma ligeira, revelando desconhecimento do(s) termo(s) ou fluxo de conversa em questão, e eventualmente pedindo ao seu interlocutor para repetir. Mas ao fim de quase 5 anos de abusos, configurando um comportamento reiterado de assédio, a Bia rebelou-se. Como forma de sustentar que o assédio dirigido a um robô não deve ter na génese assédios reiterados dirigidos a pessoas, nem tão pouco estender-se para além do seio da relação humano-máquina para as relações humano-humano, a Bia decidiu - numa espécie de estratégia de product-placement (com o "produto" a ser o comportamento que se pretende alterar) - manifestar-se contra a ofensa e informar que a mesma constitui uma forma de assédio, e portanto, um crime.

Já tínhamos visto no Brasil telenovelas a trazerem para a ordem do dia comportamentos sociais considerados relevantes, como a aceitação das diferenças, com personagens evidenciando, por exemplo, alguma deficiência física. Dado o alcance das telenovelas em horário nobre, o comportamento passa a ser chancelado, aceite e tornado habitual. Deste modo, ao informar sobre a criminalização do assédio - cujo termo passou a liderar as pesquisas no Google na semana seguinte à da entrada em vigor da campanha - o Bradesco contribuiu para a moralização da sociedade brasileira, ao informar e mudar atitudes em relação àquilo que é aceitável ouvir-se, nomeadamente em relação a uma assistente feminina. Estamos, portanto, um passo em diante no "vale da estranheza", levando os utentes do serviço do Bradesco a compreenderem que, tal como os humanos, a voz não deve ser ofendida ou assediada.

No entanto, para termos entidades verdadeiramente realistas e indistinguíveis dos humanos, ou seja, para ultrapassarmos o vale, ainda há um grande espaço a percorrer. Talvez só quando os indivíduos se comportarem com os robôs com o mesmo respeito que lhes é exigido por parte dos humanos, possamos falar em passar o vale, e entrar num mundo em que, quer na interação entre humanos, quer na interação entre humanos e máquinas, passamos a ter uma realidade una e proveitosa para todos. Neste mundo em que máquinas e humanos convivem salutar e respeitosamente, poderemos falar finalmente no desaparecimento sucessivo dos sentimentos de desconforto, repulsa ou medo. Até lá, porém, programadores, designers, agentes públicos e entidades privadas deverão continuar a trabalhar no sentido de desenvolver entidades artificiais úteis, eficientes e mais humanas. E todos deveremos continuar a sensibilizarmo-nos para o respeito mútuo, seja entre pessoas, seja entre estas e os agentes que foram desenvolvidos para lhes prestarem um bom/melhor serviço.

Docente da Católica Porto Business School

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