Onde há fumo há cigarro: em Hollywood, há uma guerra pelo antitabagismo

A cena do cigarro de Séverine demora mais de dois minutos e foi a última vez que se viu uma bond girl a fumar.
Publicado a

Num casino chinês, a enigmática Séverine puxa de um cigarro que James Bond vê fumar de forma demorada. A cena do filme Skyfall dura dois minutos, mais tempo do que a Heineken e outras marcas conseguiram no ecrã, apesar de terem gasto mais de 49 milhões de dólares em ‘product placement no título de 2012.

Esta foi a última vez que se viu uma bond girl a fumar num filme da saga, mas a ligação entre o agente 007 e o tabaco é longa e relevante. Tanto que uma dupla de investigadores publicou esta semana no Tobacco Journal um estudo sobre a prevalência de cigarros nos 24 filmes de James Bond. A conclusão? Bond deixou de fumar há quinze anos, mas ainda corre riscos por causa dos hábitos das parceiras amorosas.

A análise não é inconsequente. Há dezenas de estudos, alguns dos quais publicados em 2016, que demonstram a ligação entre cigarros nos filmes e a probabilidade de os jovens começarem a fumar. Em 2015, o chefe dos serviços de saúde dos Estados Unidos, Vivek Murthy, afirmou que eliminar os cigarros dos filmes salvaria a vida de um milhão de jovens.

Há várias organizações a lutarem para que isto aconteça, mas não existe uma obrigação legal dos estúdios de Hollywood para evitarem o uso de tabaco. Nem sequer estão proibidos acordos de ‘product placement’ nos filmes, incluindo cigarros e cigarros eletrónicos, embora as maiores tabaqueiras norte-americanas se tenham comprometido, em 1998, a uma série de restrições no marketing. Entre as medidas acordadas no Master Settlement Agreement (MSA) está a não fazer publicidade a produtos de tabaco junto de crianças e jovens.

Aqui está o grande problema entre as organizações anti-tabágicas e os estúdios: embora as produções feitas em Hollywood tenham reduzido significativamente o uso de cigarros, a presença de tabaco é permitida em filmes com classificação para adolescentes. São ainda resquícios das ligações históricas entre as tabaqueiras e a indústria cinematográfica, que durante muito tempo foi um meio privilegiado de marketing associado ao tabaco.

“A maioria dos estúdios de cinema tem políticas voluntárias que proíbem fumar em filmes que são classificados para crianças”, explica ao Dinheiro Vivo o investigador Jim F. Thrasher, professor associado da Universidade do Sul da Carolina. Ele liderou um estudo de novembro de 2015 sobre as diferenças de uso de tabaco em Hollywood e na indústria cinematográfica internacional. “Enquanto o uso de tabaco em filmes para crianças caiu substancialmente, ainda há muitos filmes com cenas de fumo que são PG-13 [para maiores de 13], tal como muitos filmes feito por realizadores e estúdios independentes”, concede.

A premissa base de trabalho da Trasher e de outras organizações, como o Center for Tobacco Control Research and Education da Universidade da Califórnia São Francisco (UCSF), é que o comportamento das estrelas nos filmes influencia os espectadores: “Os miúdos que veem mais tabaco nos filmes têm maior probabilidade de começarem a fumar. Isto foi demonstrado por um estudo conduzido em 14 diferentes países pelo mundo fora”, adianta Thrasher.

Ao impôr um sistema que classifica como M/18 os filmes com tabaco, os realizadores serão desencorajados a usarem cigarros nos seus filmes. “O objetivo não é alterar a realidade - podem ser feitas exceções em filmes que retratam personagens históricas que fumavam na vida real”, ressalva o investigador. “O intuito é reduzir o ato de fumar, que é a causa mais importante de doenças evitáveis em todo o mundo.”

A Motion Pictures Association of America (MPAA) tem uma interpretação diferente e não pretende castigar os realizadores que incluam cenas de tabaco com a classificação etária máxima. A Administração de Classificação e Rating (CARA) gerida pela MPAA é um sistema voluntário, cuja intenção é dar aos pais uma ideia do conteúdo dos filmes. “Este sistema aguentou o teste do tempo porque muda conforme a sensibilidade dos pais americanos”, diz ao Dinheiro Vivo o porta-voz Chris Ortman, referindo-se a elementos como uso de drogas e sexualidade. “Tal como descrito nas regras, não é intuito da CARA prescrever políticas sociais, mas sim ‘refletir os valores atuais da maioria dos pais americanos’.” Ortman lembra que a CARA leva em consideração a presença de cigarros na avaliação dos filmes, mas rejeita uma classificação obrigatória máxima para todas as obras que mostrem cigarros no grande ecrã.

O diretor do centro da UCSF, Stanton Glantz, opõe-se totalmente a esta visão. “A ideia de um sistema de rating é que dá aos pais informação sobre os filmes que podem deixar os filhos ver.” O centro tem uma campanha a decorrer desde 2001 contra o tabaco nos filmes e uma plataforma web com bastantes recursos, smokefreemovies.com.

Glantz reconhece, ainda assim, que “os grandes estúdios parecem estar a fazer melhor trabalho a ‘limpar’ os filmes que os independentes.” Mas acredita que ações de marketing continuam a ocorrer, ainda que em menor grau, e refere que as marcas de cigarros eletrónicos estão “abertamente a fazer product placement em filmes.”

A verdade é que os orçamentos de marketing das grandes tabaqueiras só tem aumentado nos últimos anos - tal como os lucros. De acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), as marcas de cigarros e cigarros eletrónicos investiram mais de 9 mil milhões de dólares em publicidade e atividades promocionais nos Estados Unidos, em 2014, incluindo subsídios e incentivos aos retalhistas. Com a venda de cigarros tradicionais a cair ou estagnar, as tabaqueiras estão a investir em cigarros eletrónicos, com bons resultados. A Philip Morris, conhecida pela marca Marlboro, pediu recentemente autorização para comercializar um novo tipo de cigarro, que não “queima” e por isso é considerado menos perigoso. A empresa disse mesmo que a intenção é deixar de vender cigarros tradicionais no futuro. Quando? Não se sabe. Em 2015, venderam-se 264 mil milhões de cigarros só nos Estados Unidos. No mundo todo, foram produzidos 6 biliões. As mortes provocadas pelo hábito ascendem a seis milhões por ano, meio milhão nos Estados Unidos.

“Tem havido enorme pressão social nos estúdios para eliminarem o tabaco dos filmes”, reforça Glantz. “Há menos filmes com tabaco, mas os que o têm são mais intensos. O problema está a concentrar-se em menos filmes e realizadores. Porquê, não sei”, refere o diretor.

O estudo liderado pelo investigador Jim F. Thrasher concluiu que os filmes produzidos em Hollywood têm menor probabilidade de incluir tabaco, por oposição a produções noutros mercados, com foco na Islândia (maior prevalência de fumo), o que significa que as campanhas estão a resultar.

“Tirar os cigarros não afeta o argumento”, defende Thrasher, referindo-se à nova vida do 007 como não fumador. “Há outras coisas, além de fumar, que refletem o carácter de James Bond. Incluindo outras atividades de alto risco.”

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt