Um belo dia ele decidiu comprar uma televisão com ecrã plano, 4K e mais polegadas que diâmetro de corpo. Aproveitou a oportunidade e assinou Netflix, HBO, Hulu, enfim, tudo aquilo a que tinha direito! Todo o santo dia, voltava para casa do trabalho, pegava no seu prato de comida e começava a assistir à TV até à hora de dormir.
Existiam vozes de pessoas naquela mesma casa, mas não tinha como dividir a atenção. Assim, ele preferia recolher-se no quarto com o seu prato de comida, que podia ser piza, sanduíche, macarronada, conguitos, não interessava, porque ele nem reparava no que levava à boca. Cada dia, ele sentia-se enfeitiçado por uma série diferente e, enquanto não terminava as 545 temporadas, não sossegava. Acorrentava-se assim, numa vida de aventura, suspense, comédia e às vezes terror.
E,…muitas vezes, dormia tarde e acabava passando o dia seguinte como um morto-vivo no trabalho pela falta de sono.
Um dia chegou a casa e faltou luz a noite toda. Foi muito estranho. Jantou com a família e conversaram sobre o dia, o trabalho, deram risadas e a comida lembrou-lhe a infância: bacalhau à Brás! Brincou um pouco com o cão, um yorkshire brincalhão que disseram estar há cinco anos na casa. Depois do jantar, de dar um beijo em seus filhos e fazer amor com sua mulher, começou a imaginar como seria a sua vida sem TV.
Talvez pudesse fazer coisas diferentes como sair mais com amigos, conhecer pessoas diferentes do seu meio, visitar lugares, ler mais livros, fazer mais exercícios, ouvir músicas, começar alguns hobbies, sei lá, pensar mais na vida, no seu futuro e no que queria de verdade, do fundo do seu âmago. Seria a TV a razão de tantas reclamações pela falta de tempo para poder jantar com amigos, ligar para a família?
Poderia, sem ela, dedicar-se mais à filantropia, ajudar pessoas. Será que, com a enxurrada de informações que recebia passivamente da TV, acabava não tendo tempo para pensar em mais nada? Afinal, o que estava fazendo com a sua vida? Desperdiçando-a, assistindo à vida de outras pessoas ao invés de assistir e viver a sua?
O facto é que não conseguiu chegar a respostas. Descobriu através daquela luzinha vermelhinha da TV que a energia voltou. Sem querer acordar a sua esposa, ligou o aparelho no silêncio, diminuiu a claridade, entrou na Netflix e voltou para a sua série favorita. Season finale!!! “Ah... isto é que é vida.”
Executive creative director do AKQA São Paulo