Além da inflação: Porque é que a política e as policrises se tornaram os maiores riscos para as empresas

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Durante décadas, a inflação foi o maior risco para as empresas, sobretudo em mercados emergentes. Ditava ciclos de investimento, impunha cortes de custos e transformava a previsibilidade no ativo mais valioso. Hoje esse quadro mudou: o risco deixou de ser apenas económico e passou a ser político.

Vivemos a era das policrises. O termo, cunhado pelo historiador Adam Tooze, descreve a convergência de choques que se retroalimentam: guerras comerciais, instabilidade institucional, cadeias de abastecimento fragmentadas, pressões ambientais e desinformação em escala. O que antes era exceção tornou-se regra, e o futuro deixou de ser calculável.

Perante este cenário, torna-se necessário repensar a natureza do crescimento global. Embora não seja literalmente um jogo de soma zero, o crescimento tem-se comportado como uma disputa desigual entre nações. A capacidade de transformar matérias-primas como minérios, alimentos, energia, dados ou conhecimento em valor acrescentado passou a definir quem avança e quem fica para trás.

Essa lógica atinge diretamente as empresas. Cadeias antes otimizadas pelo custo estão agora a ser redesenhadas segundo critérios geopolíticos. Nearshoring e friendshoring deixaram de ser jargão técnico para se tornarem estratégias de sobrevivência. Conselhos de administração que antes acompanhavam apenas o câmbio ou o preço de matérias-primas precisam hoje de monitorizar eleições, sanções e conflitos em tempo real.

A resposta, contudo, não passa pela criação de barreiras absolutas (que simplesmente não existem), mas sim pela resiliência geopolítica: a capacidade de reagir rapidamente, diversificar riscos e reinventar modelos de negócio. A 28.ª Pesquisa Global de CEOs da PwC mostra que 42% dos líderes acreditam que as suas empresas não serão viáveis em dez anos se mantiverem o mesmo rumo. Reinvenção, portanto, deixou de ser opção para se tornar pré-condição de sobrevivência.

Entretanto, a resiliência não se sustenta apenas na governação. Depende, sobretudo, da cultura. É a cultura que molda o comportamento diário e define se a organização será capaz de questionar premissas, valorizar a transparência e abrir-se a novas informações. Sem essa base, até a melhor estrutura de governação reduz-se a uma casca vazia.

O caso do Morgan Stanley antes da crise de 2008 é ilustrativo. O banco, um dos gigantes de Wall Street, acumulava disputas internas e elevados custos legais — sinais evidentes de desgaste cultural. Ao mesmo tempo, permitiu operações de risco extremo em crédito estruturado, que resultaram em prejuízos de milhares de milhões de dólares e quase levaram a instituição à ruína. Havia regras, comités e controlos. Mas faltava uma cultura que incentivasse o contraditório, contivesse o excesso de confiança e evitasse respostas automáticas em contexto de incerteza. Essa ausência transformou um problema localizado numa ameaça existencial.

A lição é clara: a governação estrutura, mas é a cultura que orienta. É ela que sustenta a resiliência em tempos de mudança acelerada. Num mundo marcado por fake news, inteligência artificial generativa e

polarização política, apenas empresas com um ethos aberto, transparente e focado na qualidade das perguntas conseguirão separar factos de ruídos e manter clareza estratégica.

Paradoxalmente, as ruturas também abrem caminhos. Grandes transformações económicas muitas vezes emergem de crises políticas. Assim, empresas que combinem governação preparada para contextos regulatórios distintos com uma cultura capaz de enfrentar a desinformação e a velocidade da mudança não apenas resistirão, como também encontrarão novas avenidas de crescimento.

Crescer hoje já não depende apenas de escala ou margem. Exige leitura de cenário, coerência de propósito e força cultural. A verdadeira vantagem competitiva está em adaptar-se sem perder clareza de destino.

Se antes o maior risco era a inflação, agora é a descontinuidade sistémica. Se antes o desafio era crescer, hoje é resistir para, só então, voltar a crescer.

A competição do século XXI não se define por preço ou produto. Define-se por visão do mundo.

As empresas que prosperarão serão aquelas capazes de ler o mundo, e não apenas os seus balanços.

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