As irónicas lições da DeepSeek
E eis que, já a América se via great again, a China faz uma inequívoca demostração de força nas tecnologias emergentes, assumindo a liderança da IA. O tropel de retórica imperialista, coreografia autoritária, bullying político e frenesim revogatório com que Donald Trump está a assinalar o regresso à Casa Branca conheceu um momento anticlímax: a startup chinesa DeepSeek afundou em 3,1% o índice Nasdaq e a Nvidia, joia da coroa da tecnologia americana, desvalorizou 17% (400 mil milhões de dólares!).
O descalabro bolsista aconteceu quando se tornou evidente que o sistema DeepSeek-V3, desenvolvido pela startup homónima, é tão ou mais eficiente do que os grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT. Isto apesar do seu desenvolvimento ter custado bem menos do que o dos sistemas americanos, desde logo porque a DeepSeek usa apenas uma fração dos chips avançados de IA a que as grandes tecnológicas dos EUA recorrem para treinar os seus modelos de linguagem. Chips, esses, cuja exportação para a China havia sido restringida para garantir a superioridade americana na IA.
Trump não tem, obviamente, responsabilidades nesta ultrapassagem pela China numa área tecnológica tão sensível. Mas não deixa de ser irónico que a ascensão da DeepSeek se tenha dado, justamente, após o anúncio de um mega plano para consolidar a liderança dos EUA na IA: o programa Stargate, em que a OpenAI, a Oracle e a Softbank se comprometem a investir 500 mil milhões de dólares em I&D nos próximos anos.
Seria bom que Trump percebesse que a América isolada não é assim tão great. Por isso necessita dos seus aliados, nomeadamente da Europa, para se opor às outras potências, tanto na tecnologia como na economia em geral. Mais: este caso veio demonstrar que o protecionismo americano – nos chips como em outros componentes críticos – não impede o avanço tecnológico das restantes potências, não garante a competitividade dos EUA e não traz prosperidade a ninguém.
Mas o facto de a DeepSeek ter destronado os gigantes tecnológicos americanos, ainda que seja apenas uma startup e esteja menos alavancada, é também uma lição para a Europa. Apesar do atraso na IA, a UE não deve ter complexos de inferioridade. Existe talento, conhecimento e criatividade – a fórmula de sucesso da DeepSeek – nos 27 para desenvolver novas soluções e reforçar a competitividade nas tecnologias emergentes. Como agora se provou, nem sempre a grandeza do investimento é determinante.
Isto não significa que a Europa não tenha de investir massivamente na inovação e nos setores de ponta. Deve fazê-lo, e de forma integrada e célere, para reduzir o gap tecnológico face a EUA e China. Mas o investimento precisa de ser orientado não tanto para o conhecimento científico fundamental, mas sim para a sua conversão em tecnologia. Neste pressuposto, há que envolver as tecnológicas europeias, tendo presente que, sem um esforço permanente em inovação, é muito fácil as empresas perderem competitividade e serem ultrapassadas.
Por fim, a dependência tecnológica da UE põe em causa os princípios democráticos e o modo de vida europeu. É sintomático que o conhecimento gerado pelo DeepSeek-V3 seja politicamente orientado em função dos interesses da China, havendo informação enviesada, por exemplo, em relação a Taiwan. Portanto, se a Europa quer continuar a ser uma potência económica, uma referência nos direitos sociais e um espaço de democracia, liberdade e tolerância não pode ficar numa posição de subalternidade tecnológica perante outros países e blocos regionais.