Francisco e os outros
A História é pródiga em momentos irónicos e, há dias, somou mais um: o último alto dignitário a ser recebido pelo Papa Francisco foi J.D. Vance. Apesar de mais polido e sofisticado do que Donald Trump, o vice-presidente dos EUA revela o mesmo radicalismo populista e nativista, como as conversas no “SignalGate” e a provocadora viagem à Gronelândia confirmam. Vance representa tudo o que o Papa rejeitava e combatia: a conflitualidade, a prepotência, a intolerância, a discriminação, a xenofobia. Mas quis o acaso que o governante norte-americano fosse uma das poucas pessoas a encontrar-se com Francisco no seu último dia de vida.
Já muito debilitado, o Santo Padre não deixou de receber alguém de quem discordava profundamente, em particular nas questões da imigração, dos conflitos geopolíticos e da liberalização da Igreja Católica. Segundo relatos da imprensa, Francisco foi cordial e generoso com J.D. Vance, como era seu timbre. Mas, na sua mensagem na bênção Urbi et Orbi, não deixou de instar “todos os que no mundo têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento.”
O encontro com Vance sintetiza muito daquilo que foi o pontificado de Francisco: a abertura ao diálogo e o respeito pelo outro. O Papa derrubava barreiras, abria portas e construía pontes; aproximava as pessoas e convocava a sua bondade; era intransigente na defesa da paz e inexorável no compromisso com a compaixão; privilegiava os mais vulneráveis e sacrificados e confrontava os poderosos com as suas falhas. Sempre soube distinguir os simples e mansos de coração dos fariseus, dos soberbos e cheios de vaidade. Ainda que nos antípodas ideológicos, resistia à tentação de declarar inimigos. No amor ao próximo não distinguia entre pagãos e crentes. Na construção da esperança, e ao contrário de outros de soluções fáceis e imediatas, não manipulava a fragilidade e a vulnerabilidade das pessoas pela necessidade de acreditar em qualquer coisa, essa misteriosa categoria dos crentes sem religião. Com uma simples frase – “todos, todos, todos” –, deu uma lição de inclusão a um mundo politicamente polarizado e socialmente tribalista.
Com a morte do Papa, calou-se uma das raras vozes sensatas entre os líderes mundiais. Fica a esperança de que o triste desaparecimento se converta num momento de reflexão no mundo e que crentes e não crentes consigam compreender, cabalmente, o testemunho que Francisco nos deixou. Num tempo de profundas transformações e por isso tendencialmente caótico e inseguro, pouco mais nos resta do que mantermo-nos fiéis aos valores que o Papa promoveu e que são a trave-mestra da cultura ocidental de raiz judaico-
cristã. Refiro-me ao respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades individuais, pela benevolência, pela solidariedade e pela compaixão
O falecimento do Papa reforça a ideia de que assistimos ao fim de uma era. Os avanços tecnológicos e científicos estão a acelerar a História, tornando obsoletas as nossas grelhas de análise e com isso a nossa capacidade de entendimento do mundo. Até que o nevoeiro se dissipe, importa não perder um fator absolutamente crítico nas relações entre Estados, organizações e pessoas: a empatia. Sem essa faculdade de compreender o outro, que Francisco tão bem simbolizou neste tempo convulsivo, o mundo novo que agora emerge dificilmente será admirável.
O exemplo de concórdia, generosidade e decência que Francisco nos legou também é pertinente no contexto político que vivemos em Portugal. A campanha eleitoral que se avizinha não deve servir para aprofundar pelo menos o fosso entre os partidos centrais, sob pena de ficar comprometida qualquer hipótese de compromisso em torno de uma solução governativa. Manter o respeito e o diálogo entre as forças políticas seria, de facto, uma bela homenagem ao “Papa do Povo”.
*Armindo Monteiro é Presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal