L’Etat C’est Trump: a Reforma em Curso na Administração Federal dos EUA

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Desde que tomou posse a 20 de janeiro de 2025, Trump voltou a dominar a agenda mediática e as preocupações globais. A cada dia surgem novidades que alimentam a imprevisibilidade de um contexto de múltiplas crises, de que poucos beneficiam.

A compra da Gronelândia, o controlo do Canal do Panamá, a extinção de entidades públicas, as deportações em massa, as tarifas aduaneiras, o impacto da irracionalidade nos mercados, a pressão sobre o dólar como moeda de reserva, as intervenções no sistema científico e educativo, ou a diplomacia relâmpago em crises internacionais: tantos são os episódios que é difícil acompanhar todas as mudanças. No entanto, há uma dimensão menos visível e igualmente crítica: a reforma em curso na Administração Pública federal.

Desde a viragem para o século XX, a Administração Federal norte-americana assentou num princípio basilar: um corpo de funcionários públicos qualificados, protegidos estatutariamente, capazes de dizer a verdade ao poder político, dentro do respeito pela Constituição e pelo interesse público. A cultura do "speaking truth to power" e o "power to say no" foram entendidos como pilares da boa governação num Estado de Direito Democrático.

É precisamente este modelo de administração técnica e autónoma que foi encarada como um obstáculo à agenda de Trump durante a sua primeira presidência. Em resposta, a 21 de outubro de 2020, poucos meses antes de deixar a Casa Branca, Trump assinou o decreto conhecido como Schedule F. Biden revogou-o de imediato. Contudo, com a sua nova investidura, Trump reintroduziu uma versão atualizada sob o título Restoring Accountability To Policy – Influencing Positions Within The Federal Workforce.

O que está em causa? A capacidade da Administração de atuar de forma técnica e independente, respeitando os limites da legalidade e do interesse geral.

O que pretende Trump? Um alinhamento absoluto da máquina administrativa aos seus desígnios, sem barreiras ou escrutínio.

Como? Utilizando múltiplos mecanismos, alguns explícitos no Project 2025 da Heritage Foundation, outros apenas conhecidos no círculo restrito da equipa de implementação. Sabemos, no entanto, que o plano prevê uma transformação completa em apenas 180 dias após a tomada de posse.

O Schedule F é um instrumento legal, fundado numa disposição do Civil Service Reform Act de 1978, que permite reclassificar cargos anteriormente ocupados por funcionários de carreira como posições de nomeação política. Esta mudança visa eliminar as salvaguardas do serviço público profissional, substituindo a lógica do mérito pela da lealdade política.

Através da reclassificação dos cargos como "policy-making positions", a Administração Trump procura afastar funcionários públicos experientes e instalar leais à sua linha ideológica. Trata-se de um verdadeiro assalto ao Estado.

Entre os arquitetos desta transformação, destaca-se Russell Vought, diretor do Office of Management and Budget e figura-chave da estratégia em curso. Vought lidera o esforço de reclassificação de cargos, impulsiona reformas legais para facilitar despedimentos, restringir liberdades sindicais, extinguir e fundir agências públicas, reduzir programas estatais e enfraquecer reguladores independentes.

O que quer Trump? Concentrar todo o poder executivo sob a sua direção, para implementar um projeto que proclama restaurar a "grandeza" americana.

A ironia? A grandeza dos Estados Unidos assenta, precisamente, no arranjo institucional laboriosamente construído ao longo do século XIX e consolidado no XX. Trump, ao desmantelar estas bases, ameaça corroer os alicerces do próprio sistema que pretende revitalizar.

L’Etat C’est Trump? A expressão ecoa no vazio deixado pela subversão de princípios que os Founding Fathers instilaram no sistema norte-americano. Não se está a construir um Estado mais eficiente; está-se a edificar uma máquina administrativa servil à vontade de um líder e do seu círculo próximo.

As consequências deste processo serão debatidas no 2º Foro TransformacionesUn Mundo en Ebullicón, promovido pelo Fórum de Integração Brasil Europa (FIBE), a realizar-se nos próximos dias 8 e 9 de maio, em Madrid. Uma oportunidade para refletir: o edifício institucional que moldou a modernidade democrática está sob ataque; que futuro nos espera e como podemos ser parte da solução?

*Elisabete de Carvalho é Professora Associada nas disciplinas de Administração Pública Comparada, Gestão Pública e Metodologia de Investigação do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa.

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