Minority report
O ambiente político no nosso país tornou-se insalubre e vicioso devido à dificuldade em lidar com o passado dos titulares de altos cargos públicos. Caso um governante não provenha da nomenclatura político-partidária, da Administração Pública ou da Academia, arrisca-se a ser suspeito de conflito de interesses, tráfico de influências ou promiscuidade com o setor privado. A atividade profissional anterior ao exercício de funções governativas sofre, hoje, um escrutínio público a raiar a paranoia, o que acaba, muitas vezes, por gerar suspeições, boatos, maledicência, teorias da conspiração, casos e casinhos.
Em Portugal, parece que os políticos têm de ser profissionalmente virgens, impenitentes celibatários, profundos misantropos sem família ou amigos e pessoas desprovidas de interesses, gostos ou preferências. Ora, como ninguém está disposto a fazer da política um sacerdócio, a qualidade dos governantes vai diminuindo e a suspeição enquista-se no sistema democrático, corroendo a confiança nas instituições e alimentando o populismo.
A suspeição sobre os governantes agrava-se se estes tiverem uma vida profissional ligada às empresas. Nestes casos, os portugueses parecem preferir, como no conto “Relatório Minoritário”, de Philip K. Dick, um sistema de punição “pré-crime”, baseado em premonições, em vez de um sistema punitivo “pós-crime”, considerado pouco dissuasor. Acionistas e sócios de empresas, empresários e gestores, advogados societários e parceiros de negócios, enfim, a generalidade dos profissionais ligados à atividade empresarial são suspeitos de “pré-crime” caso decidam entrar na política.
Descontando o exagero metafórico, creio que subsiste na sociedade portuguesa um arreigado preconceito em relação à atividade empresarial. Preconceito, esse, que se agudiza quando os governantes têm relações profissionais ou societárias com empresas. O mundo empresarial ainda gera receios e desconfianças, a riqueza suscita censura social e inveja, a palavra negócio tem uma conotação eminentemente negativa, o empresário continua a ser associado à imagem do patrão autocrático e um emprego público é tido como mais estável, seguro e até prestigiante do que um emprego no setor privado.
Razões históricas explicam, a meu ver, o preconceito com que a atividade empresarial é ainda hoje encarada no nosso país. Não existe uma verdadeira tradição liberal em Portugal, apesar da Constituição Vintista (1822), uma das mais avançadas da época, e de alguns fogachos de liberalismo ao longo da História. Na verdade, a cultura política e económica dominante entre nós foi sempre estatizante, quer antes da revolução liberal, quer durante o constitucionalismo republicano. Situação agravada pela Revolução de Abril, com as nacionalizações e coletivismo económico. Mesmo os governos mais recentes não abandonaram totalmente o modelo estatizante, apesar da inegável abertura da economia à iniciativa privada e da diminuição do peso do Estado na dinâmica económica.
Acredito, pois, que, além de melhorar os seus mecanismos de escrutínio e transparência dos cargos públicos, o país tem de operar uma profunda mudança de mentalidades. Devemos valorizar mais a iniciativa privada, esvaziar os preconceitos associados à atividade empresarial e desmistificar a relação dos políticos com as empresas. Caso contrário, o ambiente de suspeição manter-se-á e o estatismo também.
*Armindo Monteiro é Presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal