O Governo anunciou recentemente que será a ANACOM a entidade reguladora nacional responsável pela aplicação do AI Act, o novo regulamento europeu que pretende criar um quadro de confiança e segurança para o desenvolvimento e utilização da inteligência artificial. A decisão, à primeira vista expectável, merece uma análise crítica e um olhar pragmático sobre o que representa para empresas, cidadãos e para o ecossistema regulatório português.Em primeiro lugar, a escolha da ANACOM acrescenta uma camada adicional à já densa teia de Entidades Públicas com que qualquer empresa em Portugal tem de dialogar, quando pretende lançar um produto ou serviço digital. Quem desenvolve soluções para o mercado digital e online, conhece bem o percurso burocrático: proteção de dados com a CNPD, regras de concorrência com a Autoridade da Concorrência, direitos dos consumidores, licenças específicas do setor com outras tantas entidades e, agora, a inteligência artificial sob a tutela da ANACOM. Este “multiplicador institucional” pode significar maior fragmentação, mais tempo perdido em contactos redundantes e uma menor previsibilidade regulatória. Tudo com prejuízo para o desenvolvimento da economia e da segurança jurídica.Para startups ou pequenas empresas, que não têm departamentos jurídicos robustos, este detalhe pode fazer a diferença entre inovar em Portugal ou procurar jurisdições mais ágeis.Por outro lado, não deixa de ser revelador que a CNPD, entidade que se poderia imaginar como a natural candidata a assumir esta responsabilidade, não tenha sido escolhida. A Comissão Nacional de Proteção de Dados tem vindo, ao longo dos anos, a ser acusada de alguma paralisia e de falta de proatividade. O facto de o Governo ter preferido a ANACOM pode ser lido como um sinal de desconfiança ou, no mínimo, como o reconhecimento de que a CNPD não se encontra equipada para acompanhar a velocidade e a complexidade das transformações que a inteligência artificial traz consigo.Ainda assim, a decisão não deve ser encarada apenas sob o prisma da crítica. Há razões para otimismo. A ANACOM tem experiência consolidada na regulação de setores tecnologicamente intensivos, como as telecomunicações, onde a tensão entre inovação e proteção do consumidor é constante. Acresce que a responsabilidade por esta nova área ficará, esperamos todos nós, à Prof.Ana Raquel Brízido Castro, cuja competência e prestígio académico são unanimemente reconhecidos. Saber que uma matéria tão sensível como a regulação da IA em Portugal ficará sob a sua alçada é, para todos, motivo de confiança e até de entusiasmo. É sinal de que não se trata apenas de um encaixe burocrático, mas de uma aposta num perfil capaz de compreender as nuances técnicas, jurídicas e éticas desta revolução digital. Portugal precisava de uma resposta à altura da Europa. O AI Act não é um diploma menor: pode moldar durante décadas a forma como usamos algoritmos, como protegemos direitos fundamentais e como equilibramos inovação com responsabilidade. Ter uma entidade reguladora credível, com liderança qualificada, é essencial.No entanto, voltando à vaca fria, não podemos ignorar o desafio estrutural: multiplicar entidades reguladoras não é sinónimo de melhor regulação. Menos sobreposição institucional, mais coordenação e maior clareza para os agentes económicos é uma vantagem de monta. Multiplicando interlocutores públicos é correr o risco de transformar uma oportunidade histórica numa sucessão de entraves administrativos geradores de ineficiência.No final, a decisão do Governo é simultaneamente um reconhecimento e uma esperança. Um reconhecimento de que a CNPD precisa de mais meios para ser uma Autoridade de Controlo eficiente como as suas congéneres nos demais Estados Membros. Uma esperança porque a escolha de quem liderará esta área dentro da ANACOM mostra que Portugal pode, afinal, estar disposto a levar a sério a inteligência artificial.Advogado e especialista em Proteção de Dados