O drama da retenção na fonte

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Muito se tem dito e escrito sobre a decisão do Governo de baralhar as contas a empresas e trabalhadores e aplicar diferentes tabelas de retenção em agosto e setembro, para logo as alterar de novo em outubro, lembrando ainda que foram diferentes até julho. Confuso? Um bocadinho. Mas vamos ao que importa: o IRS é, como [quase] toda a gente sabe, um imposto sobre o rendimento que o Estado aplica sobre, lá está, o rendimento anual de cada contribuinte. Através de uma tabela previamente definida a cada Orçamento do Estado, são aplicadas uma quantidade de cálculos que determinam quanto desse imposto deve ser pago mensalmente via retenção na fonte. Uma daquelas parcelas do recibo de vencimento que não nos cai na conta, de forma simples, e que funciona como uma espécie de adiantamento necessário para cumprir as suas obrigações nos serviços que todos financiamos, como seja a Saúde e a Educação. 

No final do ano, o Estado faz as contas ao que cada contribuinte devia ter retido, ao que reteve e às despesas que fez. Se as Finanças cobraram mais do que era devido ao longo do ano, devolvem esse montante após a entrega da nossa declaração de IRS.  Não é um presente, como as vezes se faz parecer: é dinheiro que nos pertence. Se, por outro lado, retivemos menos do que devíamos para chegar a taxa com que temos de contribuir, teremos de acertar contas com o Estado e pagar IRS. E isto também não é um castigo: todos nós temos de pagar impostos. 

Ora, o que a AD está a fazer este ano - é certo que podemos discutir o timing, mesmo em vésperas de autárquicas, mas isso é outra conversa - é o mesmo que já fez no ano passado: reter menos dinheiro na fonte, mensalmente, e acertar contas com as pessoas no final do ano. Ou, se quiser, cobrar-nos os impostos que nos são devidos somente ao fim dos 12 meses, ao invés de ficar com mais dinheiro “adiantado”. 

A discussão sobre as pessoas estarem a ser “enganadas”, porque no final do ano podem não receber ou até ter de pagar IRS, tem estado a crescer e parece-me, sinceramente, bastante condescendente. Todos nós, enquanto contribuintes, devemos saber quais são as nossas obrigações fiscais. O Estado reter-nos mais imposto do que nos é devido, todos os meses, é como se nos estivesse a dizer: “ora dá cá já esse dinheiro porque no final podes não o ter para me pagar”. 

Só que esse dinheiro, rendimento que não podemos usar, está assim a ser emprestado ao Estado sem que ele nos pague por isso. Já se eu tiver, todos os meses, mais dinheiro disponível, posso alocar parte desse rendimento a um produto de investimento - mesmo que apenas uma conta poupança - que me garante duas coisas: 1) que tenho dinheiro para acertar contas com Estado se, no fim do ano, não me tiver ainda retido o suficiente, e 2) que posso ganhar algum dinheiro com o retorno desse investimento, o que não é possível se o Estado continuar a ficar-me com liquidez que faz falta para ter essa margem. 

O discurso demagógico e alarmista de que os portugueses não sabem tomar conta do seu dinheiro, ou de que estão a ser enganados porque “dão agora para tirar depois” (obrigações são obrigações e, já dizia Benjamin Franklin, “nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos” ) mostra bem o caminho que temos de fazer em prol da literacia financeira neste país. 

Talvez fosse mais útil,  por parte de quem está tão preocupado com o facto de os portugueses poderem ser “surpreendidos” com pagamento de IRS no próximo ano, que explicassem duas coisas a esses mesmos contribuintes: que podem optar por colocar de lado, já, a diferença de salário que estão a receber desde este mês, e garantir que têm uma poupança feita (idealmente, aplicada em algum produto para render algo...) e que até podem pedir à sua entidade patronal para fazer uma retenção superior àquela que está definida agora pelo Executivo. Assim, certamente não serão “surpreendidos” quando forem chamados a pagar um imposto que pagam todos os anos, numa modalidade diferente. 

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