Em fevereiro de 2020, os títulos sobre o fim da lua-de-mel entre Volodymyr Zelensky e os ucranianos multiplicavam-se. Da Foreign Policy à Bloomberg, ao The Independent, vários meios de comunicação internacionais davam conta das dificuldades do antigo comediante, eleito de forma inequívoca menos de um ano antes, em pôr em prática as mudanças que prometera. Dois anos depois, a invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, viria mudar tudo. Revelando uma coragem que poucos imaginavam que tivesse, Zelensky recusou sair do país e liderou o seu povo num esforço de resistência que desafia as probabilidades. Como bom ator, despiu o fato e nunca mais largou o verde tropa, impressionando os líderes ocidentais que o receberam em herói enquanto procuravam ajudar Kiev na sua luta desigual com o gigante russo. Mas passados 1246 dias de um conflito que o Kremlin acreditou resolver em apenas alguns, começam a surgir brechas no estado de graça de Zelensky. A promulgação pelo presidente ucraniano de uma lei que retira competências a dois organismos de luta contra a corrupção levou, pela primeira vez desde a invasão, milhares de ucranianos em protesto às ruas da capital e de outras cidades. E ouviu-se preocupação com a democracia da parte dos dirigentes europeus. Ainda na quarta-feira, Zelensky garantiu que a medida era necessária para combater a “influência russa”, mas garantiu ter ouvido a rua e ontem apresentou um novo projeto de lei que prometeu ser “equilibrado”.Fontes ouvidas pelo Kyiv Independent, site em inglês próximo de Bruxelas, afirmam que estas mudanças, que representam um claro reforço do poder presidencial, foram motivadas por recentes investigações ao círculo de Zelensky. Suborno, abuso de poder, peculato são algumas das suspeitas que pesam sobre próximos colaboradores do presidente. Acusações que a oposição - que afastou ela própria a ideia de organizar eleições em tempo de guerra - já há muito denunciava mas que vinham sendo caladas com receio de dar à propaganda russa um presente. Com os níveis de confiança a cair - desceram 11 pontos de maio para junho, segundo o Instituto Internacional de Sociologia de Kiev - Zelensky vai ter de perceber que a guerra não justifica tudo e que não pode varrer os problemas para debaixo dos tanques russos. Num editorial intitulado “Zelensky acaba de trair a democracia da Ucrânia e todos os que lutaram por ela”, o mesmo Kyiv Independent escreve que “o presidente está a fazer a opção de minar as instituições democráticas para expandir o seu poder pessoal”, juntando-se às críticas de que estará no caminho da autocracia que tanto critica como regime de Putin. Um grito de alerta. Mas Zelensky saberá ouvir?Editora-executiva do Diário de Notícias