O que compram 199,5 mil milhões de dólares?
Jeff Bezos tem, à hora a que estou a fechar este texto, uma fortuna avaliada em 199,5 mil milhões de dólares. É o terceiro homem mais rico do mundo. A sua Amazon, apesar de já ter escorregado 21,6% em bolsa desde o início do ano, continua a valer uns impressionantes 1,84 biliões de dólares e a ter adeptos em todos os mercados onde está presente – afinal, que outra empresa nos consegue garantir encomendas em 24 horas, não importa o que estamos a comprar?
O multimilionário voltou aos escaparates dos media esta semana porque convidou para embarcarem, na sua nave espacial New Shepard, seis mulheres, é o epíteto de muita coisa, e é por isso que o trago esta semana. Primeiro, porque chamar ao grupo de seis passageiras – entre elas a cantora Katy Perry e a noiva do próprio Bezzos – “tripulação” ou “astronautas” me parece claramente excessivo, até porque a nave espacial é completamente autónoma e não pode ser pilotada do lado de dentro. Além disso, afirmar que esta foi “foi a segunda vez que uma tripulação exclusivamente feminina” foi ao espaço, uma mensagem amplamente divulgada pelos media, é de uma profunda falta de respeito para Valentina Tereshkova, a primeira mulher que viajou para o espaço, numa missão solitária, em 1963. Comparar qualquer uma das integrantes da segunda viagem comercial à engenheira astronauta é falta de seriedade. Para além de Perry e de Sánchez, estiveram na nave espacial a jornalista Gayle King, a produtora Kerianne Flynn, a ativista Amanda Nguyen e uma única engenheira aerospacial, Aisha Bowe, que trabalha entrentanto numa empresa de tecnologia.
Numa altura em que o mundo enfenta a ameaça de uma crise global – o alerta já foi lançado pelo FMI – o espetáculo de Jeff Bezzos foi apenas isso mesmo. Um espetáculo que só o [muito] dinheiro pode comprar. E acresce ainda outro facto: a tentativa de fazer de Bezzos um homem comprometido com a representação feminina, ou qualquer outra causa, para sermos sinceros, é risível. Senão vejamos: há mais de 10 anos que o patrão da Amazon é acusado pelos trabalhadores de práticas indignas de trabalho, desde cronometrar o tempo que vão à casa-de-banho até obrigar motoristas da empresa a urinar para dentro de garrafas de água para não pararem no caminho; controlos apertados das suas metas de eficiência e não garantia de aumentos salariais para forçar as demissões. Há cerca de quatro anos, foi amplamente noticiado que Bezzos não quis abrir um armazém da Amazon em Nova Iorque, porque, referiu um executivo sénior da empresa na altura, não queria lidar com os sindicatos – fortíssimos naquela cidade.
Jeff Bezzos é, à semelhança de Elon Musk – cujas práticas de recursos humanos são também sobejamente conhecidas – e de Donalt Trump, um rufia. E o ambiente que, atualmente, grassa nos EUA e inevitavelmente um pouco por todo o mundo, porque tem sido legitimado, é que os rufias ganham. Jeff Bezzos levou seis mulheres num voo de 11 minutos ao espaço sideral – a troco de valores que não foram divulgados – e tentou que esse tempo apagasse anos e anos de práticas abusivas numa economia que continua a ser-lhe favorável. Na verdade, para muitos, Bezzos passou a ser um legítimo apoiante da igualdade.
Mas talvez seja importante lembrar que todas as referências sobre Diversidade e Inclusão foram retiradas do relatório de contas da Amazon de 2024. O que me leva à pergunta que pulula no meu cérebro desde que vi as imagens sobre o segundo voo comercial ao espaço: estamos realmente dispostos a deixar que o dinheiro compre mesmo tudo? Até a nossa memória? Pode ser que o fim-de-semana prolongado que se aproximal me ajude a chegar a uma resposta. Boa Páscoa.