Passo-a-passo, continuamos sem andar

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Todos os anos são recolhidos mais dados, tratados mais números e escritos milhares de caracteres, que resultam de reflexões profundas, com bases científicas ou empíricas. Mas a verdade é que o panorama tarda em mudar: na Europa, as mulheres continuam a ganhar, em média, menos 13% do que os homens. E, nos últimos dez anos, os progressos têm sido lentos, registando-se uma redução da diferença salarial de apenas 3 pontos percentuais desde 2014.

No ano passado, por ocasião do Dia da Igualdade Salarial – assinalado a 15 de novembro – a Comissão Europeia recordava, na sua página, que “a UE está a trabalhar no sentido de colmatar esta disparidade salarial através da criação de nova legislação e do acompanhamento da sua aplicação”. Um esforço que “inclui uma diretiva específica sobre igualdade de remuneração, bem como legislação em matéria de transparência salarial, de equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada e de equilíbrio entre homens e mulheres nos conselhos de administração das empresas”.

Algumas empresas têm-se esforçado para diminuir esta diferença – de salientar que, por norma, aquelas que melhor o fazem são as que têm administrações mais diversas em género – mas ainda assim o caminho mostra-se longo. Em Portugal, especificamente, a Autoridades para as Condições do Trabalho notificou quatro mil empresas por apresentarem um índice de disparidade salarial acima dos 5% previstos pela diretiva europeia – como pode ler na página 12 da presente edição do DN. Em Portugal, as diferenças salariais médias são superiores à da União Europeia, fixando-se nos 16%.

No mesmo sentido, a Reuters divulgou ontem uma análise em que mostrava que, nas redações de todo o mundo, continuam a ser os homens a ocupar os cargos de chefia – logo, os mais bem remunerados – à semelhança do que acontece em muitas empresas. A diferença torna-se, no entanto, mais óbvia em lugares onde as mulheres são em muito mais números que os homens. Como nas redações de muitos países, precisamente.

É verdade que estamos todos um bocadinho cansados de falar do mesmo assunto – as mulheres incluídas, acreditem. E, sendo certo que falar demasiado de uma coisa pode torná-la alvo de mais ataques, a verdade é que é mesmo preciso fazermos mais e melhor. É que, quer queiramos quer não, as mulheres representam metade da população mundial. Dizem os dados que, se as diferenças salariais desaparecessem, isso representaria um aporte de 12 biliões (doze zeros!) - para o PIB mundial. Não parece coisa que se possa desperdiçar. E é também verdade que a igualdade continua a aborrecer as pessoas – veja-se o que tem sido decidido pelos mais recentes governantes de algumas economias mundiais. Dados libertados esta semana pela agência LLYC revelam que, em Portugal, as pesquisas online relacionadas com igualdade e feminismo caíram 54% nos últimos três anos. E que 36% das mensagens antifeministas associam o feminismo à radicalização, reforçando uma perceção de confronto ideológico. O relatório “Sem filtro” procurou avaliar o impacto da radicalização online na sociedade, e envolveu. 8,5 milhões de mensagens e técnicas avançadas de machine learning. A descoberta? É que foram encontradas várias estratégias utilizadas por comunidades antifeministas para desacreditar o movimento pela igualdade. “Termos desqualificativos e desinformação são três vezes mais frequentes do que no discurso feminista, segundo o relatório”.

No encerramento de uma semana que foi marcada por episódios diplomáticos mais do que lamentáveis – o que aconteceu na passada sexta-feira na Casa Branca devia envergonhar-nos a todos -, por crises políticas, por palavras violentas nas redes sociais, por expulsão de congressistas da casa da maior democracia do mundo e por factos falsos a serem apresentados como verdades, pareceu-me particularmente importante recordar o que nos dizem os números. E o que estes números dizem de nós. Porque quando falamos em fosso salarial, falamos também em fosso de oportunidades, de responsabilidades e de liberdades. E, tal como em outros momentos na História, é importante que saibamos que fossos existem e nos afastam, para que possamos trabalhar para os fechar. Juntos. Porque sem fossos entre nós, sejam de que natureza forem, teremos uma sociedade muito mais justa, muito mais livre e muito mais forte. E não há Democracia que não floresça numa sociedade saudável, diversa e comprometida.

Com tantas mudanças no mundo – e tantas outras que se avizinham, dentro de portas – nunca é demais lembrar que é sempre juntos que somos mais fortes. Sem fossos entre nós.

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