“Plataformas Digitais” – O que esperar (ainda) do Supremo Tribunal de Justiça?

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Diz-nos o senso comum que se os ingredientes da massa forem idênticos é de esperar um mesmo sabor e, até, uma mesma textura aos bolos e outros doces a que com aquela se pretenda dar forma. O mesmo se poderia esperar das decisões judiciais resultantes da aplicação de uma mesma lei, como a das plataformas digitais. 

Todavia, assim como o pasteleiro determina a ordem por que os envolve, e a quantidade mais ou menos gulosa que utiliza de cada um na sua receita, também a jurisprudência responsável pelo reconhecimento de contratos de trabalho no âmbito de uma mesma lei das plataformas digitais tem sido variada, ainda que, maioritariamente, venha decidindo pelo não reconhecimento da existência de contrato de trabalho. 

Mais recentemente foi a vez de se pronunciar o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). E são já três as decisões que proferiu quanto a esta temática. Todas de sabor diferente.

Começou por se debruçar sobre a aplicação da lei no tempo. E contrariando o seu próprio entendimento anterior, e até aí dominante, decidiu que a nova presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital se deveria aplicar mesmo relativamente às relações jurídicas iniciadas antes da sua entrada em vigor, mas apenas relativamente aos factos que tivessem sido praticados após essa data. 

Na segunda decisão proferida quis o STJ reconhecer a existência de contrato de trabalho. E fê-lo, mas de forma errada. 

Nesta decisão concluiu que não se logrou ilidir a presunção da existência de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital. O que só lhe foi possível por ter errado ao sustentar que estivessem verificados índices de subordinação, materializados em poderes de direção, supervisão e controle da plataforma digital sobre o alegado trabalhador [estafeta]. Ou por ter defendido existir uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica da plataforma, ou que o mesmo se encontrasse sujeito a poderes de autoridade por parte daquela. Ignorando, contudo, que resultava da matéria de facto que o estafeta havia recusado, sem qualquer consequência para si, efetuar mais de 2000 serviços propostos através da plataforma, num período de fevereiro a novembro de 2023.

Mas mais ainda, por ter errado ao desconsiderar a total liberdade, o poder de decisão e a autonomia do estafeta, que é quem decide, de sua vontade e sem qualquer obrigação de regularidade, quando e por quanto tempo pretende ligar-se à plataforma; quantas e quais as propostas de serviço que pretenda executar; que é livre de poder subcontratar outrem na execução dos serviços, e que é quem assume o risco de todo o serviço que venha a prestar.

À terceira decisão, o STJ veio lançar a dúvida quanto à receita que parecia ter escolhido para determinar o reconhecimento, ou não, de contrato de trabalho em plataforma digital. É que desta vez, apesar da matéria de facto já constante dos autos permitir afastar a presunção de laboralidade ínsita no artigo 12.º-A do CT, optou por determinar que a atividade prestada pelo estafeta no âmbito de plataforma digital tivesse de considerar “o circunstancialismo fático de cada caso concreto”, pelo que haveria necessidade de apurar, no caso em análise, outra informação relevante, como seja a dependência económica e a não exclusividade do estafeta face à plataforma. 

Inevitável constatar que a receita ainda não está afinada. E, mais até, que há um desacerto na decisão anterior.  

É que se o STJ, como não podia deixar de ser, concebe que a relação entre os estafetas e a plataforma – que funciona de forma igual para todos os estafetas que a ela se ligam - não corresponde a um contrato de trabalho, basear a decisão de  qualificação na eventual regularidade de utilização da mesma ou na exclusividade de exercício da atividade por parte do estafeta evidencia a falta de poder de direção, supervisão e controlo da plataforma sobre o estafeta, bem como a inexistência de subordinação ou inserção na gestão algorítmica da plataforma. Pois que é o estafeta que decide a seu “bel-prazer” quando pretende ligar-se à plataforma, definindo a sua regularidade e escolhendo dos serviços propostos apenas aqueles que pretende realizar.

Atente-se a que o STJ, na segunda decisão proferida, não obstante ter considerado provado que o estafeta se tinha registado na plataforma em fevereiro de 2023 e rejeitado propostas de serviço logo no mesmo mês de fevereiro, só veio reconhecer o contrato de trabalho com início em junho do referido ano. 

Portanto, aceitando aquele Supremo Tribunal que, embora registado na plataforma desde fevereiro de 2023 e com recusas de propostas de serviços desde o final desse mês, não há contrato de trabalho até junho do mesmo ano, e inexistindo qualquer alteração à relação da plataforma com o estafeta desde o registo até à referida data de junho, terá de ser porque reconhece que o estafeta não está juridicamente subordinado à plataforma. O que para qualificar a existência de um contrato de trabalho é ingrediente essencial.

Deste modo, e como a realização de atividade mais ou menos regular, depende, apenas e só, da vontade do estafeta, não cremos que possa fazer-se depender a existência de contrato de trabalho da escolha que, num concreto período temporal, o estafeta tenha tomado de utilizar mais ou menos a plataforma. 

Esperamos com expectativa que outra iguaria nos reservará, ainda, o Supremo Tribunal de Justiça.

Associada Coordenadora de Direito do Trabalho da CMS Portugal

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