Rearmamento, um esforço colossal europeu

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Diante do distanciamento estratégico dos Estados Unidos, a União Europeia decidiu reforçar significativamente sua autonomia na área da defesa. Em março, o Conselho Europeu aprovou um ambicioso plano orçamentário que poderia arrecadar até 800 mil milhões de euros. No entanto, esta ambição concorre com outras agendas das quais a União Europeia não pode retirar o pé do acelerador – sobretudo na redução da dependência energética dos combustíveis fósseis, da corrida aos meios de inovação digital que permitam acompanhas Estados Unidos e Ásia, e que colidem todas elas com a necessária proteção dos critérios de estabilidade da moeda única, e consequentemente do tratado fiscal europeu. Ainda assim não é possível olhar para trás. Há demasiado a perder num momento que é, economicamente e geopoliticamente falando, crucial para a sobrevivência da UE, e que exige um esforço colossal de transformação na próxima década.

Numa primeira inferência importa dizer que a estratégia de defesa europeia se dividirá em duas frentes principais de trabalho: a primeira permite aos Estados-Membros ultrapassar seus limites habituais de gastos em até 1,5% do PIB por quatro anos, sem incorrer em sanções por déficit excessivo, o que pode gerar uma folga fiscal de até 650 mil milhões de euros. Contudo, países como França, Itália e Espanha demonstraram reservas quanto à utilização desse mecanismo. A segunda parte do plano consiste na criação de um novo instrumento financeiro europeu chamado SAFE, com potencial de arrecadar 150 mil milhões de euros para financiar gastos militares dos Estados-Membros. Essa nova estratégia de defesa europeia se alinha a outras transições prioritárias — energética e digital — conforme sugerido pelo relatório Draghi. Os investimentos necessários para cumprir essas metas somariam quase 1 bilião de euros por ano até 2028, reduzindo-se levemente nos anos seguintes. Comparativamente, os fluxos históricos de financiamento mobilizados na UE entre 2015 e 2024 foram de cerca de 600 mil milhões de euros por ano, o que revela a magnitude do esforço necessário.

Importa depois salientar que de facto, dobrar ou até triplicar os fluxos anuais de financiamento para defesa é significativo, e exigirá um importante exercício de equilíbrio. O aumento nas emissões de dívida, a política monetária restritiva do BCE e a elevação das taxas de juros de longo prazo podem limitar a capacidade orçamentária dos Estados, deslocando investimentos públicos e reduzindo os privados. Um exemplo disso foi a reação do mercado financeiro ao plano alemão de investimento em defesa, que se refletiu numa subida generalizada dos prémios de risco nos juros das emissões de divida soberana da maior economia europeia. O que traz ao de volta o risco de antigos fantasmas do tempo das crises das dividas soberanas – e que deixou cicatrizes profundas em Portugal. Outra vertente tem a ver com as escolhas. Mais orçamento militar, em contrapartida do que? Os países podem ser forçados a realocar recursos de outras áreas, para evitar elevação do déficit e da carga tributária, mas que podem criar tensões nas funções do Estado Social, com consequente agravamento do descontentamento dos cidadãos.

Por fim, e para concluir, para contornar estes riscos e obstáculos, são necessárias medidas de política económica que ampliem o impacto positivo desses investimentos sobre a economia. Estes obstáculos poderiam ser atenuados por decisões de política económica adequadas. De facto, quanto maior for o impacto destes investimentos adicionais na atividade económica, mais sustentável será o aumento da dívida. A criação de um mecanismo europeu para vendas militares, previsto para iniciar em 2028, visa fortalecer o setor e estimular o investimento privado. No curto prazo, enquanto a União de Poupança e Investimento, cuja estratégia foi revelada pela Comissão em 19 de março, não se concretiza, uma alternativa seria flexibilizar temporariamente as normas que restringem o crédito bancário e as securitizações, facilitando a ampliação do financiamento e impulsionando a economia de forma mais ampla. O que por si, ajudaria sem dúvida a aliviar a carga dos ombros dos Estados, mas que também abre novo debate relativamente ao que esta flexibilização poderia gerar.

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