Sem Reformas nem Indústria, não há Futuro — O País que Somos e Aquele que Devíamos Ser
Vivemos num país que, perigosamente, se habituou à vulgaridade — não por ausência de talento, nem por escassez de oportunidades históricas, mas por complacência institucional, resignação política e uma cultura económica que se satisfaz com pouco.
Um país que se conforma com o crescimento anémico, com a estagnação da produtividade e com uma economia assente num modelo de baixo valor acrescentado, intensivo em fatores que não escalam: mão-de-obra pouco qualificada, turismo e serviços de escassa sofisticação.
A grande ilusão é acreditarmos que este modelo é sustentável. A verdade, nua e crua, é que Portugal está a caminhar para um lento, silencioso e, se nada for feito, irreversível declínio. E só há uma resposta séria a esta ameaça: reformas estruturais e uma reindustrialização moderna, estratégica e ambiciosa.
Portugal vive, há demasiado tempo, mergulhado numa fantasia económica construída sobre fundos comunitários, choques temporários e impulsos conjunturais — uma ilusão tanto mais perturbadora quanto, segundo a própria literatura económica, a mera integração numa zona desenvolvida deveria, por si só, bastar para impulsionar a convergência em níveis de vida. Como compreender, então, que após centenas de milhares de milhões de euros em fundos europeus, a nossa taxa de crescimento não só não tenha acelerado, como permaneça persistentemente anémica? Dir-se-ia que fazer pior teria sido, simplesmente, difícil. Os recursos que deveriam ter sido alavanca de futuro foram, demasiadas vezes, convertidos em almofada do presente — consumidos, mas não investidos. Dispersos, quando deviam ter sido estratégicos. Onde está, afinal, todo esse dinheiro?
O crescimento recente que alguns celebram como sinal de recuperação não assenta em qualquer transformação estrutural profunda. Pelo contrário: resulta quase exclusivamente da retoma do turismo de massas após a pandemia e da execução dos fundos extraordinários do PRR. Ambos efémeros. Ambos exógenos. Ambos incapazes de garantir um futuro sustentável.
Segundo as projeções mais recentes da Comissão Europeia (Ageing Report 2024), o crescimento potencial da economia portuguesa cairá para uns alarmantes 0,4% em 2032, situando-se numa média de apenas 1% ao ano entre 2023 e 2033 — valor que nos atira para a cauda da União Europeia em quase todos os indicadores de progresso.
Este não é apenas um cenário económico sombrio. É uma sentença de estagnação estrutural, com implicações sociais e políticas graves. Uma economia que cresce sistematicamente abaixo da média da União Europeia não gera rendimentos suficientes para melhorar os salários, não cria oportunidades para fixar talento, não atrai investimento qualificado e não consegue garantir a sustentabilidade do seu Estado Social. Pior ainda: não oferece esperança.
E, não obstante, os sucessivos governos têm persistido na confusão entre ilusão e progresso, preferindo a gestão do ciclo eleitoral a uma verdadeira estratégia de desenvolvimento. Contentam-se com um crescimento recente marginalmente acima da média da zona euro, esquecendo que essa mesma zona euro está repleta de economias maduras, com níveis de vida expressivos, mas também envelhecidas e saturadas.
Ignoram, com preocupante ligeireza, que vários países do Leste europeu, que entraram na União Europeia depois de Portugal e com menos meios, já nos ultrapassaram em rendimento per capita, produtividade e dinamismo empresarial.
Um dos dados mais chocantes — e reveladores — é este: em 2023, 48% do crescimento económico português resultou do turismo de massas. Não se trata de demonizar o setor — o turismo é legítimo e relevante —, mas sim de reconhecer que a sua hipertrofia reflete uma perigosa dependência de uma atividade volátil, de baixa produtividade e escasso valor por visitante. Tornámo-nos reféns de um modelo que explora o território sem o qualificar, que enche os centros urbanos sem os desenvolver e que cria empregos que não sustentam vidas dignas.
Este desequilíbrio estrutural revela-se num perfil de especialização económica absolutamente desajustado face aos desafios contemporâneos: serviços pouco sofisticados e consumo interno sustentam o produto, enquanto os sectores que deveriam liderar — indústria transformadora, tecnologias emergentes, bens transacionáveis — perdem peso, influência e massa crítica. Assim, o sistema económico português torna-se incapaz de absorver qualificações, reter talento jovem ou escalar processos de inovação. Resultado? Um círculo vicioso de baixas expectativas e baixos rendimentos, incompatível com a convergência europeia que já foi, outrora, um desígnio nacional.
E tudo começa no investimento — ou, melhor dizendo, na ausência dele. Sem investimento produtivo, não há ganhos de produtividade. E sem produtividade, não há progresso económico, nem salários justos, nem competitividade externa. O país não tem um problema de falta de recursos — tem um problema de desperdício. Gasta em excesso, investe mal e quase sempre onde menos importa. Confunde sistematicamente despesa com investimento, enche os bolsos do presente e hipoteca o futuro. A máquina do Estado devora muito, mas constrói pouco. E, no fim, o país paga — todos os dias — o preço da sua própria ilusão.
Em 2024, mesmo com o PRR em plena execução, a taxa de investimento (Formação Bruta de Capital Fixo em percentagem do PIB) ficou-se pelos 19,8%, abaixo da média da UE de 21,2%. Em 1999, esse valor era de 27,6%. Esta quebra estrutural é, em si mesma, um indicador de declínio. Um país que investe menos do que a média europeia, enquanto cresce menos e parte de mais atrás, está, inevitavelmente, a perder terreno.
A explicação para esta retração é multifactorial, mas há um diagnóstico claro: o ambiente económico português é hostil ao investimento produtivo. O tecido empresarial encontra-se fragilizado; a fiscalidade pune quem ousa; a justiça é lenta e incerta; a administração pública é pesada, dispersa e burocratizada. O Estado, em vez de ser catalisador de dinamismo económico, funciona, demasiadas vezes, como um entrave à transformação e à ambição.
Não surpreende, por isso, que Portugal continue a ocupar a 18.ª posição na União Europeia em produtividade por trabalhador e em PIB per capita — dados que, importa frisar, estão provavelmente sobrevalorizados por subestimação da população ativa e do emprego. Em suma: a produtividade estagna porque as condições estruturais a inibem, e os poucos ganhos que existem são frágeis e inconsistentes.
Acresce a este quadro o que pode ser considerado o maior bloqueio ao investimento em Portugal: o sistema fiscal. Hoje, Portugal tem a segunda taxa efetiva de IRC mais elevada da União Europeia, e um dos maiores esforços fiscais em função do rendimento relativo. Em 2023, esse esforço atingiu 113,6% da média europeia — o que significa que, em proporção à sua riqueza, Portugal exige dos seus contribuintes muito mais do que a maioria dos países europeus.
Este fardo fiscal é não só insustentável, como estruturalmente perverso: penaliza a acumulação de capital, desencoraja a inovação, afugenta o investimento estrangeiro e castiga os empresários que procuram crescer e internacionalizar-se. A derrama estadual progressiva — uma anomalia no contexto europeu — é o espelho de uma política incoerente: queremos atrair grandes empresas, mas impomos-lhes uma carga fiscal desproporcionada.
No domínio do IRS, o panorama é igualmente preocupante: taxas marginais que ultrapassam os 50% em escalões médios-altos, um número excessivo de escalões, regimes sobrepostos e exceções que tornam o sistema ineficiente, complexo e desincentivador da progressão na carreira ou da permanência em Portugal de quadros qualificados.
Perante este quadro, a reindustrialização não é uma opção ideológica. É uma exigência estratégica. Uma urgência nacional. Um imperativo económico e moral. E não se trata de um regresso ao passado, mas de uma projeção para o futuro: uma indústria limpa, digital, intensiva em conhecimento, capaz de criar valor, exportar, pagar bons salários e reequilibrar o país territorialmente.
Essa reindustrialização exige:
· Uma redução estrutural e previsível da carga fiscal, com enfoque no capital e na competitividade;
· Um uso criterioso dos fundos europeus, orientado para projetos de elevada produtividade e valor acrescentado, e não para financiar estruturas redundantes ou operações de cosmética institucional;
· Uma estratégia robusta de capacitação dos trabalhadores e dos empregadores, centrada nas competências digitais, tecnológicas e de gestão;
· Um reforço substancial da ligação entre universidades e empresas, criando ecossistemas reais de inovação e transferência de conhecimento para a economia real;
· E, sobretudo, um quadro legal e regulatório estável, claro e previsível, que transmita confiança aos investidores e aos agentes económicos.
A reindustrialização será, também, o instrumento mais eficaz para aliviar a pressão sobre os centros urbanos, atrair investimento para o interior, criar coesão territorial e reverter a desertificação populacional.
Mas para que isto seja possível, é necessário mais do que slogans ou programas eleitorais. É imperioso reformar profundamente o Estado. Reduzir a despesa corrente. Reorganizar a administração pública. Descentralizar serviços. Digitalizar processos. E, com os recursos libertados, reforçar o investimento público reprodutivo, aquele que realmente gera crescimento e rendimento futuros.
É urgente reconstruir a arquitetura fiscal, tornando-a mais simples, transparente e competitiva. Eliminar os benefícios fiscais injustificados. Reformular o IRS com base em comparações internacionais sérias. Reduzir o IRC com credibilidade e previsibilidade.
É essencial pensar a imigração de forma regulada e estratégica, ligada às necessidades do mercado de trabalho. É necessário reformular o sistema de ensino, sobretudo o profissional, colocando-o ao serviço da empregabilidade, da produtividade e da competitividade. E é inadiável reformar a justiça, cuja lentidão e opacidade prejudicam o funcionamento económico tanto quanto a segurança jurídica.
Portugal encontra-se, pois, numa encruzilhada histórica. Pode continuar a gerir o seu declínio com paliativos — subsídios, discursos, programas dispersos — até que o país se esvazie de talento, de ideias e de ambição. Ou pode assumir, com coragem e verdade, a única rota que lhe resta: uma nova ambição nacional assente na reindustrialização inteligente, no investimento produtivo, na inovação e na valorização do mérito.
Essa escolha exigirá liderança política, visão estratégica e consensos estruturantes. Exigirá pensar além do ciclo eleitoral, além das conveniências partidárias. Exigirá fazer o que é certo — mesmo que não seja popular.
Porque o que está em causa não é apenas o crescimento económico. É a nossa posição na Europa. É o futuro das próximas gerações. É a dignidade de um país que já deu muito ao mundo, mas que se encontra, hoje, à beira de desperdiçar o seu próprio potencial.
Reindustrializar Portugal não é apenas uma prioridade económica. É uma missão geracional. É uma questão de sobrevivência nacional.
*Óscar Afonso, Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF.
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