“Trabalho XXI”: por uma reforma séria, com verdade e responsabilidade

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Nas últimas semanas, a proposta de reforma laboral “Trabalho XXI”, apresentada pelo Governo, tem sido alvo de duras críticas vindas de diferentes quadrantes da sociedade. Apesar de legítimas num Estado de Direito, muitas das críticas assentam em leituras precipitadas, slogans ideológicos e, nalguns casos, interpretações factualmente incorretas.

Por altura da Agenda do Trabalho Digno, num processo de concertação em tudo diferente a este, não se ouviram as mesmas vozes a criticar aquilo que foi um “tsunami” de medidas atentatórias à gestão da relação laboral nas empresas, colocando-nos ao nível de uma legislação laboral do século passado.

Convém recordar que a proposta de reforma laboral “Trabalho XXI” se trata ainda de um Anteprojeto, sujeito a discussão pública, a contributos técnicos e a debate social, na concertação social. Por isso mesmo, o debate sério e informado é essencial — e não pode partir da recusa automática de qualquer tentativa de adaptação da legislação laboral à realidade do século XXI.

As formas de trabalhar mudaram. A crescente digitalização, a mobilidade, os desafios demográficos e as novas exigências de conciliação entre vida pessoal e profissional impõem-nos um olhar renovado sobre o Direito do Trabalho. Ignorar estas transformações em nome de uma suposta imobilidade normativa não é uma forma de proteger os trabalhadores — é, pelo contrário, um erro político e económico.

A proposta "Trabalho XXI" introduz medidas novas e relevantes. Mas nenhuma delas representa, de forma séria, um ataque ou uma supressão dolosa de direitos fundamentais. A estabilidade no emprego continua a ser valorizada, mas reconhece-se que esta não pode assentar apenas em rigidez legal. Reforçar o emprego qualificado e duradouro exige uma economia dinâmica, políticas ativas de formação e regras laborais equilibradas e eficazes.

Parentalidade: da retórica alarmista à realidade normativa

Particularmente injusta tem sido a acusação de que o anteprojeto atenta contra os direitos de parentalidade. Essa afirmação não resiste à análise factual. Pelo contrário, o texto introduz avanços relevantes:

  • Luto gestacional: passa de 3 dias para uma licença entre 14 e 30 dias para a trabalhadora, sendo conferida ao trabalhador acompanhante a possibilidade de faltar justificadamente até 15 dias. Um reforço sensível e necessário, que reconhece a dimensão emocional desta perda.

  • Licença de amamentação: o anteprojeto normaliza e baliza a duração da dispensa, exigindo a apresentação de atestado médico logo no início. O que existe hoje é um regime juridicamente indefinido, que pode gerar conflito. Nesta matéria, o Anteprojeto vem apenas estabelecer um limite temporal para a amamentação (poder-se-á discutir qual o melhor prazo), e passa a ser exigido que a trabalhadora apresente "atestado médico que o comprove" logo no início do período de dispensa, que está a amamentar. Com a legislação em vigor, o limite temporal é incerto e exige-se que a trabalhadora comunique ao empregador a amamentação com 10 dias de antecedência, devendo apresentar atestado médico apenas se a dispensa se prolongar para além do primeiro ano de vida do filho, Não podemos dizer que estamos perante um retrocesso do legislador.  Esta alteração introduz previsibilidade e equilíbrio para ambas as partes.

  • Licença parental exclusiva do pai: o anteprojeto introduz uma flexibilização com reforço de responsabilidades. Prevê-se a obrigatoriedade de gozo pelo pai de 28 dias de licença parental, seguidos ou interpolados, nos 42 dias seguintes ao nascimento da criança — sendo 14 desses dias gozados obrigatoriamente de forma consecutiva e imediata após o nascimento. Trata-se de uma medida que não só protege a relação familiar como reforça o papel do pai nos primeiros dias de vida do filho, promovendo a igualdade e a corresponsabilização parental.

  • Trabalho flexível e remoto: quando bem regulado e fiscalizado, com cláusulas de salvaguarda, este tipo de medidas pode favorecer efetivamente a conciliação entre vida pessoal e profissional, sobretudo em contextos familiares exigentes.

Modernização com segurança: contratos adaptados e flexibilidade responsável

Outros aspetos menos debatidos, mas altamente relevantes para a dinamização do mercado de trabalho, merecem ser destacados:

  • A repristinação do Banco de Horas individual, com os devidos limites e condições, devolve liberdade contratual em situações em que o acordo entre trabalhador e empregador o justifique, respeitando sempre os direitos fundamentais à compensação e ao descanso.

  • O aperfeiçoamento do contrato de muito curta duração e a revisitação da figura do contrato de trabalho intermitente revelam preocupação com realidades concretas da nossa economia, em particular o setor do turismo, onde as variações sazonais exigem soluções jurídicas ágeis, mas com proteção. Ao reformular o contrato de trabalho intermitente com regras reforçadas de estabilidade e proteção, o legislador responde a um desafio antigo: tornar o vínculo intermitente viável, seguro e ajustado às especificidades da atividade económica.

Por uma discussão informada, técnica e construtiva

O que se exige neste momento é coragem político-partidária, seriedade técnica e bom senso institucional. Nenhuma reforma é perfeita, mas reformas com intenção de modernização, justiça e adaptabilidade merecem ser avaliadas pelo seu conteúdo, e não pelas etiquetas políticas que lhes colam. Para termos resultados diferentes, temos de fazer algo diferente. A “Trabalho XXI” pode vir a ser uma oportunidade importante para tornar o mercado de trabalho português mais ágil, mais justo e mais transparente, sem perder direitos fundamentais dos trabalhadores. Desperdiçá-la por ruído ideológico ou desinformação seria um erro histórico.

Presidente da Confederação do Turismo de Portugal

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