Trabalho XXI: Qual a proposta de valor do anteprojeto?

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O anteprojeto de reforma do Código do Trabalho, conhecido como “Trabalho XXI”, propõe uma revisão profunda da legislação laboral portuguesa, com impacto transversal nas relações de trabalho. A apresentação em forma de anteprojeto para fomentar um debate público alargado e de concertação social é um sinal de maturidade, mas não deve ser confundido com sinal de consenso. A proposta de valor reside na sua capacidade de apresentar uma visão estratégica, face aos desafios estruturais do mercado de trabalho — e não apenas às urgências conjunturais específicas.

A reforma legislativa laboral em curso não pode ser encarada como um exercício de reação a fenómenos isolados ou a casos mediáticos. O Direito do Trabalho deve ser pensado com um horizonte de médio e longo prazo, uma vez que apenas desta forma se consegue garantir uma maior eficácia das suas regras. Este ramo do Direito não é — nem deve ser — um super-herói que intervém em todas as relações contratuais. A sua força reside precisamente na capacidade de distinguir onde é necessário intervir e onde o excesso de regulação pode gerar efeitos perversos. De qualquer forma, as críticas no sentido da pertinência temporal da reforma parecem esquecer que o Código do Trabalho de 2009 já teve 24 alterações, sendo muito relevantes as ocorridas em 2019 e 2023.

Não obstante, neste anteprojeto há propostas que procuram responder a transformações reais e duradouras no mercado de trabalho, com soluções que, embora não consensuais, revelam uma leitura atualizada do mercado de trabalho. As alterações relativas aos trabalhadores independentes economicamente dependentes e a presunção de contrato de trabalho nas plataformas digitais são respostas de adequação da legislação à realidade. Na verdade, o anteprojeto evidencia a intenção do legislador em dar maior coerência ao sistema jurídico, sem cair na tentação de estender o Direito do Trabalho a todas as formas de prestação de atividade profissional.

Por sua vez, as medidas relativas à parentalidade, como o reforço da licença inicial através partilha entre progenitores, são passos importantes para promover maior equidade e corresponsabilidade familiar. Já quanto ao regime de teletrabalho, a flexibilização da escolha do local de trabalho por parte do teletrabalhador traduz-se, não só numa adaptação importante às necessidades das relações laborais, como também numa conciliação mais eficaz entre a vida pessoal e a vida profissional.

Também merece destaque a revisão do regime da contratação coletiva, com a limitação da sobrevigência das convenções e a possibilidade de aplicação empresarial alargada. Estas medidas podem contribuir para revitalizar a negociação coletiva, desde que acompanhadas por mecanismos que garantam representatividade e equilíbrio entre as partes. No entanto, a sua originalidade pode deixar sempre algumas interrogações quanto à sua eficácia prática.

Por outro lado, medidas como a reposição do banco de horas individual, as alterações ao regime de contratos a termo e a revogação da “proibição” do outsourcing não devem ser vistas como ameaças automáticas à estabilidade laboral. Pelo contrário, podem ser instrumentos legítimos de gestão empresarial, desde que enquadrados por regras claras e acompanhados por garantias adequadas. As novas soluções apresentadas no anteprojeto não são, por si só, sinónimo de precariedade — e o Direito do Trabalho moderno deve ser capaz de permitir fazer essa distinção.

Temos, ainda, uma proposta de modernidade e ajuste com os demais ordenamentos jurídicos europeus com a alteração da regra geral da reintegração após despedimento, fazendo depender de decisão judicial em caso de oposição por parte do empregador.  Com o regime proposto, vai competir aos tribunais, ponderadas as circunstâncias na situação concreta, apreciar os argumentos utilizados na oposição à reintegração e construir critérios válidos através da jurisprudência.

Finalmente, o anteprojeto parece compreender que a relação de trabalho clássica identificada pelos manuais de Direito do Trabalho já não é, na sua grande maioria, a da I Revolução Industrial nos termos descritos por Charles Dickens. Nos últimos anos, tem sido possível acompanhar o crescimento do poder negocial dos trabalhadores em determinadores setores de atividade, principalmente quando o capital humano é escasso e altamente especializado. Desta forma, o anteprojeto salvaguarda a autonomia e liberdade do trabalhador face a decisões unilaterais da Autoridade das Condições de Trabalho no âmbito das ações de reconhecimento de existência de contrato de trabalho. Princípio este que nos parece fundamental e perfeitamente salvaguardado, mais uma vez, por via judicial, na medida em que a liberdade e autonomia da decisão do trabalhador é avaliada por um juiz.    

O anteprojeto “Trabalho XXI” não é uma reforma acabada nem consensual. É, isso sim, uma proposta que merece ser discutida com seriedade, sem caricaturas nem simplificações. O Direito do Trabalho tem de evoluir, mas essa evolução deve ser orientada por princípios e não por impulsos. A sua função não é estar em todo o lado, mas estar onde é realmente necessário — sob pena de não proteger quem mais precisa.

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