Transparência e Governance Fiscal: Um Olhar sobre o Código de Boas Práticas Tributárias
Um estudo recente elaborado pela KPMG para o European Business Tax Forum (EBTF)1 destacou uma tendência crescente entre grandes empresas europeias para a divulgação voluntária da sua “pegada” fiscal e abordagem aos impostos, com impactos positivos na relação com stakeholders.
O referido estudo revela que a existência de um governance fiscal robusto traz vantagens estratégicas para as empresas que adotaram este caminho, nomeadamente as seguintes:
· redução proativa dos riscos fiscais, minimizando posições incertas, litígios e potenciais contingências;
· identificação atempada de oportunidades fiscais, promovendo eficiência fiscal alinhada com a estratégia de negócio;
· reforço do compliance fiscal, assegurando a conformidade contínua das posições assumidas de um ponto de vista declarativo com a legislação em vigor em cada momento e com a estratégia definida pelas empresas.
No entanto, esta análise indicia que a maior parte das empresas portuguesas limita o âmbito do respetivo governance fiscal ao estritamente necessário para a preparação das Demonstrações Financeiras e cumprimento de obrigações legais.
De facto, seja por razões de confidencialidade ou por algum distanciamento face ao tema, poucas são as empresas com uma estratégia fiscal publicamente assumida e que inclua procedimentos de controlo eficazes com vista a assegurar que essa estratégia está presente nas decisões tomadas transversalmente no seio da sua organização.
Por outro lado, a nossa experiência diz-nos que as relações com a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) continuam marcadas por fiscalizações que, com frequência, se estendem por períodos de tempo demasiado alargados e que, por vezes, abordam matérias já definitivamente resolvidas pelos Tribunais, o que, invariavelmente, redunda em níveis de litigância sem sentido.
Em vez de uma relação assente em princípios de confiança e previsibilidade, muitas empresas enfrentam um clima de escrutínio constante e interpretações da lei por parte da AT invariavelmente orientadas para o sentido mais desfavorável das várias alternativas que, por vezes, podem resultar da letra da lei.
Os mecanismos de cooperação introduzidos na legislação (v.g. gestor de contribuinte, assistência pré-declarativa e procedimento de correção de erros da administração tributária) não têm correspondido de forma eficaz e atempada às necessidades das empresas e não têm tido efeito relevante na redução da litigância.
A falta de um efetivo e eficaz canal de colaboração entre contribuintes e AT e a complexidade do sistema fiscal português continuam a gerar um ambiente de incerteza jurídica que prejudica sujeitos passivos e a própria AT.
A experiência que encontramos em países como Itália, Japão e os Países Baixos (entre muitos outros) demonstra que um modelo de relação cooperativa baseado na transparência e no autocontrolo pode gerar uma fiscalização menos intrusiva e reduzir significativamente os custos de compliance fiscal, aumentando a segurança jurídica.
A AT deu em 2019 um passo relevante neste sentido com a criação do Código de Boas Práticas Tributárias (CBPT), no âmbito do Fórum dos Grandes Contribuintes.
O CBPT propõe recomendações e obrigações voluntárias para fomentar a transparência e a gestão responsável dos riscos fiscais, alicerçados em princípios como boa-fé, cooperação, proporcionalidade e prevenção de litígios.
Contudo, parece-nos que o CBPT ainda não atingiu os objetivos subjacentes.
Falta-lhe um conjunto de incentivos claros para estimular a divulgação voluntária de informação fiscal e mecanismos concretos para reforçar a segurança jurídica dos contribuintes.
Um exemplo disto é a abordagem à prevenção de litígios fiscais: enquanto os contribuintes são incentivados a fornecer informação detalhada e justificar as suas posições fiscais – o que representa um custo operacional significativo para os mesmos –, a AT compromete-se apenas com declarações de princípio sobre uniformidade interpretativa, sem medidas concretas para diferençar os novos canais de comunicação dos já existentes.
Comparando com o Código de Buenas Prácticas Tributarias espanhol em vigor desde 2010 e que serviu de inspiração ao modelo português, aí observa-se uma abordagem mais eficaz.
Em Espanha as empresas podem incluir um anexo explicativo nas declarações fiscais, funcionando este como presunção de boa-fé numa situação de eventual avaliação sobre a diligência e motivações do contribuinte pela autoridade fiscal, com efetiva relevância em sede de valorização da prova e na vertente sancionatória.
O nosso CBPT precisa, por isso, de medidas concretas e incentivos tangíveis idênticos aos que já existem em Espanha para estimular a transparência e boa governança fiscal e atingir uma das suas principais vantagens na perspetiva dos contribuintes: a segurança jurídica.
De facto, estudos da OCDE, da Tax Foundation e do Observatório para a Competitividade Fiscal mostram que, para além ou até mais do que a carga fiscal, a previsibilidade e a qualidade da relação entre administração fiscal e contribuintes são determinantes para um ambiente fiscal favorável à captação de investimento.
Um bom sistema fiscal deve, por isso, (i) ser simples na sua gestão, (ii) ser transparente (i.e. sem excessos de burocracia) e (iii) ser dotado de mecanismos que permitam a colaboração entre as autoridades e os administrados.
Quando tanto se fala em medidas de redução da carga fiscal como um aspeto incontornável para o restabelecimento da competitividade fiscal de Portugal, convém não menosprezar os efeitos positivos nessa competitividade decorrentes da introdução de mecanismos que promovessem (e não apenas impusessem) a transparência e a boa governança fiscal.
O CBPT foi um passo positivo mas precisa de medidas concretas e incentivos tangíveis para estimular a transparência e a boa governança fiscal, medidas essas que teriam um impacto residual ou mesmo nulo na receita fiscal (e.g. acesso a regimes simplificados e/ou menos intrusivos, prioridade em pedidos e decisões administrativas aos contribuintes com bom histórico de cooperação, entre outros).
Enquanto tal não acontece, as empresas que atuam no mercado global, mais sofisticadas ou “apenas” pressionadas pela atuação dos seus pares, procuram extrair valor da transparência e de um modelo de tax governance robusto…
*Tomás Costa Ramos é Internacional Tax Director da KPMG Portugal