Os imóveis do Estado e a habitação acessível

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Naturalmente, o Estado português possui muitos milhares de imóveis. Número que cresce com os que recebe por dívidas às Finanças e à Segurança Social, de quem morre sem descendência, doações, os que compra ou manda construir.

O que já não é natural é que, em 2023, não haja uma base de dados na qual os imóveis estejam classificados (localização, uso, dimensão...), apesar de já vários governos terem incluído nos seus programas a criação da dita base de dados - o que, admitindo que cada ministério tenha pelo menos uma listagem, seria apenas uma questão de juntar e compatibilizar a informação. Falamos de informação que deve ser pública e de algo que é a base para uma boa gestão do património.

O resultado é o que todos conhecemos: imóveis do Estado abandonados, como as casas dos guardas-florestais no meio das serras, as instalações militares no meio das cidades e tantos outros. Um desperdício de valor incalculável, lá está, porque não há informação...

A este custo de oportunidade (rendimento/utilidade que se poderia obter com esses imóveis), deve somar-se o dos imóveis que estão parcialmente devolutos ou poderiam ser mais bem rentabilizados com outras utilizações. Como os prédios com arquivos mortos no centro de Lisboa ou a prisão no alto do Parque Eduardo VII.

Lembram-se das garagens dos ministérios no Terreiro do Paço, antes de serem transformadas em Restaurantes e Lojas? O país continua cheio de erros desses.

Volta e meia a comunicação social chama a atenção para um caso mais chocante: um forte costeiro em Cascais, um quartel em Benfica ou um palácio na Junqueira, abandonados e vandalizados. Às vezes, com a vergonha, a Administração lá se mexe.

O problema da gestão dos imóveis do Estado existe desde que há Estado, sendo natural que as mudanças na sociedade obriguem a mudanças na utilização dos imóveis. Veja-se o caso dos imóveis militares: em 1974 acabou a guerra e em 2004 o serviço militar obrigatório. Naturalmente, com a drástica diminuição dos efetivos, deixou de se justificar a existência de tantos imóveis militares, principalmente em Lisboa e no Porto, mas quase 20 anos passados são muitos os casos por resolver.

Ao longo do tempo utilizaram-se várias soluções - veja-se a transformação dos conventos em hospitais ou o aproveitamento de imóveis históricos em localizações com potencial turístico para criar as Pousadas de Portugal e note-se como, neste caso, isso permitiu a sua reabilitação e rentabilização (criação de emprego e de riqueza), a promoção do nosso património histórico e cultural e dos territórios em que estão inseridos. Uma excelente solução, portanto. Recorde-se as antigas escolas primárias abandonadas por falta de alunos, que foram vendidas e transformadas em habitações, em vez de ficarem em ruínas.

Em 1993, face à imensidão de imóveis devolutos e às dificuldades financeiras do Estado, criou-se a ESTAMO, uma empresa pública com o objetivo de comprar imóveis ao Estado para depois vender, gerando assim receitas para baixar o défice ou a dívida. Ao longo dos anos vários imóveis foram vendidos ou concessionados a entidades de interesse público, como autarquias ou misericórdias, ou a privados, por exemplo através do Programa Revive (Turismo), contribuindo para transformar imóveis devolutos em excelentes projetos e angariar receitas para o Estado. Mas em 2019 o governo decidiu travar a venda ou concessão de imóveis devolutos do Estado e transformar a maioria dos mesmos em habitação acessível. A decisão parecia-lhes lógica, mas não é.

O Estado não tem vocação para promotor imobiliário, pois está obrigado a processos de contratação pública com longos tempos de execução (pior quando há conflitos ou falências) e que, muitas vezes, não conduzem aos melhores resultados. E a maioria das instituições não possui instrumentos de gestão, agilidade e meios humanos com experiência e espírito empreendedor. Falou-se em libertá-los da contratação pública, mas os resultados seriam, provavelmente, catastróficos. Veja-se o exemplo da transformação das instalações do Ministério da Educação, na Av. 5 de Outubro, numa residência de estudantes: foi anunciando no fim de 2018 e passado cinco anos a obra ainda não começou. E parecia simples.

O principal problema é que, para produzir habitação acessível, é muito mais económico e rápido construir habitação nova, em grande escala e de forma industrializada, do que fazer reabilitações de pequena dimensão, em alguns casos de património protegido ou em localizações muito valorizadas. Com o mesmo orçamento, vamos obter muito menos casas e demorar muito mais tempo. O que, quando precisamos de muitas casas rapidamente, é um contrassenso total.

Perguntem às pessoas que precisam de casa se valorizam mais uma localização central num imóvel reabilitado, mas que leva mais de sete anos a ser entregue, ou uma casa nova afastada do centro, mas que lhe é entregue uns anos antes. Quem precisa de casa precisa de casa hoje, não é daqui a sete ou dez anos - e não percamos tempo com quem pensa que podemos viver todos no centro de Lisboa.

Os imóveis são como os quartos de hotel, se não forem utilizados num dia, esse dia foi perdido para sempre, não fica em stock para ser utilizado mais tarde. Portanto, os milhares de imóveis devolutos há muitos anos representam um enorme desperdício para a nossa economia e qualidade de vida.

O Estado deve utilizar os princípios da gestão de portefólio e todos os instrumentos disponíveis na gestão do seu património imobiliário, ou seja, deve vender mas também deve comprar imóveis (principalmente quando o mercado está em baixa), de forma a maximizar a utilidade do seu património e não governar coartado por tabus sobre a venda de património, inspirados sabe-se lá por quem, como se todos os imóveis do Estado fossem intocáveis como a Torre de Belém.

Sim, faz todo o sentido vender, concessionar ou arrendar imóveis a privados que lhes possam dar uma utilização vantajosa para a sociedade. Para além das receitas que se obtém para abater à enorme dívida (pela qual pagamos juros) ou investir em habitação acessível ou outros serviços aos cidadãos, os imóveis são reabilitados e utilizados, gerando investimento e emprego e melhorando a segurança e a qualidade de vida. Os imóveis não devem estar devolutos, a degradar-se, a ser vandalizados, devem ter o uso que melhor os rentabiliza.

O governo que queria (quer?) confiscar imóveis devolutos de privados deveria começar por dar o exemplo com os imóveis que tem sob gestão, colocando-os ao serviço da sociedade. O interesse público defende-se gerindo bem o património público e para gerir é preciso conhecer o que existe, perceber a sua vocação (melhor uso/melhor rentabilização) e executar rapidamente e da melhor forma as melhores soluções. E se a melhor solução for a venda, há que ter em atenção a forma como a mesma é feita.

Há muitos anos, ainda Hong Kong era gerido pelo Reino Unido e Macau por Portugal, contava-se que o governo de Hong Kong tinha vendido um terreno em leilão por um valor recorde mundial e que, pela mesma altura, o governo de Macau também vendeu um terreno, sem ser em leilão, e quem o comprou vendeu a outro que, por sua vez, vendeu a outro que o vendeu a um terceiro e antes de se construir alguma coisa já todos tinham ganho dinheiro à custa do Governo de Macau, pois o processo de venda não foi o mais eficaz.

Não há nenhum processo mais transparente e que possa atingir valores mais elevados do que um leilão competitivo e aberto, publicitado com antecedência. Foi o que aconteceu na venda em hasta pública dos terrenos da antiga Feira Popular, em Lisboa, um processo exemplarmente conduzido por Fernando Medina e António Furtado (hoje responsáveis pelo património imobiliário do Estado e pela ESTAMO). Os terrenos foram vendidos por um valor recorde, de 238,5 milhões de euros, mais 85,5 milhões do que as expectativas, e Medina referiu que a receita extra seria afeta à habitação para a classe média.

Mas se queremos desenvolver habitação acessível, o caminho não é vender terrenos ao maior preço, mas sim garantir que damos condições aos promotores para fornecerem um produto que é impossível de fornecer sem um forte apoio do Estado. Basta fazer as contas aos custos (terrenos, construção, impostos, juros, projetos, etc.) e a quanto os portugueses podem pagar. Estude-se o que Madrid está a fazer e adapte-se à realidade portuguesa (mais difícil).

As últimas notícias (recebidas na COPIP) são muito animadoras. Parece que finalmente o governo deixou de estar refém das ideias alucinadas da extrema-esquerda e vai criar condições para que se construa habitação acessível, em escala, através da disponibilização de terrenos (direitos de superfície de longo prazo) e outras condições motivadoras e da reforma do kafkiano sistema de licenciamento urbano, que só é vantajoso para os corruptos (criar dificuldades para vender facilidades) e é uma das principais causas do nosso atraso.

Através da cedência do direito de superfície o Estado consegue que os privados invistam nos projetos e na construção mantendo a posse dos terrenos.

Não tenho dúvidas de que, da mesma forma que os promotores e investidores reabilitaram o centro das cidades assim que o Estado criou as condições para que isso fosse possível, eles estarão disponíveis para construir habitação acessível (um mix apelativo de rentabilidade e risco).

Os governos devem perceber que têm o nobre papel de liderar: definir objetivos, criar as condições (incentivos e penalizações) para a sociedade os atingir, fiscalizar, punir e premiar. Mantendo-se atentos para corrigir o curso assim que necessário.

Parece que finalmente há alguém ao leme.

Rui Ramos-Pinto Coelho, Gestor

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