Ricardo Paes Mamede é economista, formado pelo ISEG e pela Universidade de Bocconi em Itália. Atualmente, é professor no ISCTE. Presença habitual no debate televisivo, tem vários livros e estudos escritos sobre as economias portuguesa e europeia, sobre o problema da dívida pública. Foi diretor de Estudos do Ministério da Economia, trabalhou no Observatório do QREN. É coautor no blogue "Ladrões de Bicicletas", que também deu um livro. Nasceu no ano da Revolução, 1974..Esteve no grupo de trabalho do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda sobre a sustentabilidade da dívida. Foram feitas propostas no final de abril, mas o tema caiu da agenda. Tem esperança que o Governo ainda volte a esta questão?.O problema de dívida será, quase seguramente, nos anos mais próximos, três, cinco anos, um problema com o qual, não apenas Portugal mas o conjunto da União Europeia, terá de se confrontar. E, portanto, aquilo que o grupo de trabalho em que participei procura fazer é avançar com uma discussão que, mais cedo ou mais tarde, irá colocar-se e que convém que o Estado português esteja devidamente preparado para a enfrentar. Eu não tinha a expectativa de que o tema se tornasse prioridade no debate público e político a nível nacional, sabia, à partida, que não era a essa orientação fundamental do Governo atualmente em funções. E, tendo em conta a evolução recente da economia portuguesa, é normal que haja algum otimismo, alguma expectativa de que seja possível lidar com o problema da elevada dívida pública através de iniciativas que não exijam tanto do ponto de vista de empenho político, digamos assim, do Governo nacional. Mas, em qualquer caso, como digo, creio que é um tema que, mais cedo ou mais tarde, virá para cima da mesa e é sempre bom que estejamos preparados para o enfrentar..Mas faz sentido tentar renegociar a dívida no atual contexto de políticas europeias?.Bom, quando dizemos que faz sentido temos de ter em consideração quer as questões financeiras, quer as questões económicas, quer as questões políticas. Do ponto de vista financeiro, estamos, neste momento, a passar por um período de alguma acalmia de mercados, e nos últimos meses, principalmente nas últimas semanas, no caso português, assistimos a alguma tendência para redução da taxa de juro das obrigações, prazos mais longos, o que dá algum conforto a quem tem de gerir a dívida pública portuguesa. Agora, ainda assim, devemos ter em consideração que aquilo que a atual dívida pública, ao nível dos juros médios, que continuam a ser pagos, exige do ponto de vista de esforço financeiro ao Estado português, é algo que coloca as finanças públicas numa situação de enorme pressão. E isto tem reflexos do ponto de vista económico. Isto significa, basicamente, que para que o Estado português pague como está a pagar atualmente, cerca de 4,5% do PIB todos os anos em juros, significa que é dinheiro que não pode ser utilizado para outros fins. Isto tem impactos quer na enorme pressão sobre a qual continuam a viver serviços públicos, como a saúde e a educação em Portugal, quer também, como temos visto, em alguma retração do investimento público, isto tem reflexo na evolução da economia portuguesa. Temos ainda o nível de desemprego extremamente elevado e o Estado não está a dar um contributo através das políticas públicas e da política orçamental para reduzir de forma mais acelerada o desemprego em Portugal. Agora, a oportunidade política não é grande, isto é, não há grandes condições para, neste momento imediato, discutir-se reestruturações da dívida por uma razão muito simples: na Europa só se fazem alterações substanciais na forma como as coisas funcionam em situações críticas. A Europa, a União Europeia, é uma máquina incrivelmente pesada onde só há decisões relevantes para alterar o estado de coisas, por muito grave que ele seja, quando a situação atinge níveis de rotura. E, neste momento, não estamos num nível de rotura. Pelo contrário, a União Europeia está a crescer a ritmos que já não crescia há muito tempo, e nestas condições, infelizmente, embora seja de vários pontos de vista a melhor altura para se discutir reestruturação da dívida, do ponto de vista política é a altura mais improvável em que essa discussão seja aceite..Mas os cenários de crise sucedem-se, como temos visto nos últimos anos. Em que cenário é que veria Portugal a ter que negociar a saída do euro?.Creio que demos aqui um passo muito grande entre a discussão da renegociação da dívida e a saída do Euro. O cenário de renegociação, de reestruturação dos termos em que a dívida tem de ser paga… Eu não faço muita distinção entre renegociação e reestruturação, acho que é uma daquelas coisas, semântica que entrou no debate público em Portugal sem grande sentido. Renegoceia-se para reestruturar, não há reestruturação sem renegociação, nem renegociação que não vise uma reestruturação. Portanto, não faz muito sentido esta diferenciação de linguagem. Em qualquer caso, o mundo vive com riscos, nós apesar de vivermos numa situação em que estamos, em Portugal, aliviados, e gostamos de gozar um bocadinho deste alívio depois de anos e anos de uma enorme depressão. Não apenas económica mas também anímica, digamos assim, pessoal e coletiva, há um certo desafogo, de "crispação", como lhe chamou o Presidente da República, que as pessoas gostam de sentir por algum tempo. Agora, isto não nos deve fazer iludir o facto de vivermos num mundo que é complexo, em que grande parte dos problemas que existiam continuam a existir, onde grande parte dos riscos que existiam continuam a existir. E em que as condições que a economia portuguesa tem para enfrentar os eventuais riscos não só diminuíram como alguns até aumentaram. O nível de endividamento público e privado hoje continua a ser bem maior do que foi em 2007/2008. E, deste ponto de vista, isto é uma fragilidade acrescida sobre a economia portuguesa. Portanto, nós temos cenários, não vale a pena, não precisamos de imaginar muito… Se as negociações do Brexit correrem mal e derem origem a um grande contração da economia inglesa ou britânica; se nos Estados Unidos, este movimento que tem sido anunciado nestes dias de, não só aumento das taxas de juro centrais, mas de até retrocesso de redução dos estímulos monetários de compra de ativos... Aparentemente há intenção da Reserva Federal americana de começar a vender alguns dos ativos que comprou no processo de expansão monetária dos últimos tempos. Tudo isto, associado à incerta geopolítica que a nova administração tem, são riscos acrescidos... Um aumento da taxa de juro nos Estados Unidos teria impactos imediatos no aumento das taxas de juro na Europa também. E depois há o problema de instabilidade financeira mundial, o Bank of International Settlements [Banco de Pagamentos Internacionais] publicou, esta semana, um relatório sobre, precisamente, os riscos financeiros a nível internacional, e que chama a atenção para uma questão muito simples, que é: há ciclos financeiros que são muito claros nas últimas décadas, tipicamente a seguir a um período de enorme liquidez nos mercados, que é o que temos tido com os bancos centrais a tornarem muito fácil e muito barato o acesso a crédito e a expandirem no fundo a oferta de moeda pelas economias. Isto tem dado, sistematicamente, origem a formação de bolhas especulativas, em diferentes tipos de mercados, seja no imobiliário, seja nos mercados bolsistas, seja nos mercados cambiais, que mais cedo ou mais tarde dão origem a crises financeiras, que podem ser maiores ou menores. E, no dia em que isso acontecer, nós vamos voltar a ter problemas para sustentar o nível de dívida pública que temos em Portugal..Esse enquadramento é, obviamente, importante. O que lhe perguntávamos, voltando à questão inicial, é: se Portugal não conseguir, por exemplo, negociar condições mais vantajosas em termos de dívida e de juros, Portugal devia pôr em cima da mesa a saída do euro? Ou é um cenário completamente descabido?.Não, quer dizer, vamos lá ver... A questão da saída do euro, do meu ponto de vista, tem de ser colocada, pelo menos, a dois níveis. Há um primeiro nível que tem a ver com saber como é que nós podemos reagir a situações de enorme instabilidade que venham a gerar-se como se geraram nos últimos anos. Porque a realidade é esta: os últimos anos mostraram que a União Europeia está muito mal preparada para lidar com situações de grande instabilidade económica e financeira. E a forma como lidou, na sequência da crise 2008/2010, que depois se estendeu devido à resposta que a União Europeia decidiu adotar, foi impor sobre os cidadãos das economias mais fracas o grosso dos custos de um ajustamento cujas dificuldades derivam da ausência de resposta à crise no quadro europeu, ao contrário do que se passou nos Estados Unidos ou até no próprio Reino Unido. E, portanto, esta é uma situação que os países que estão nesta situação mais frágil têm de se precaver e não podem aceitar. Isto é uma primeira questão, é saber se, a certa altura, se repete esta violência sobre as populações, de exigir depressões profundas, duplicação de níveis de desemprego, desemprego de longa duração, destruição de capacidade produtiva... Nós temos, em certo momento, de nos perguntar se este tipo de arranjo institucional é o mais conveniente para lidar com crises..Dizia que havia uma segunda forma de ver o problema..Há um segundo nível de análise, que tende a fugir ao debate político mas que para mim, enquanto economista, com perspetivas, com preocupações no desenvolvimento das economias mais longo prazo, tem a ver com o seguinte: o Euro não é apenas uma moeda que nós utilizamos para pagar as nossas compras do dia-a-dia. O Euro tem, nas suas regras, implícito um modelo de sociedade. Um modelo de sociedade que, basicamente, consiste na ideia de que o ajustamento de todos os desequilíbrios económicos se faz fundamentalmente por via das dinâmicas de mercado. Isto na Europa significa, essencialmente, duas coisas. Significa a tendência para a divergência entre regiões, uma tendência para reforço da capacidade económica de regiões mais avançadas, e, em segundo lugar, significa o ajustamento aos desequilíbrios macroeconómicos, sempre feitos com base seja nos salários, seja nos direitos sociais. Isto é essência do projeto do Euro. Ora, este projeto, do meu ponto de vista dos valores, do meu ponto de vista, se quisermos, político-ideológico, não é aquele projeto no qual eu me revejo. Isto não significa que a resposta imediata a isto seja "nós devemos sair do Euro já". Creio que toda a gente tem consciência de que uma saída abrupta do Euro é algo que tem custos e é preciso estar politicamente preparado para suportar estes custos. E é preciso que as pessoas estejam disponíveis para os assumir. Agora, creio que postas as coisas em termos simples, este euro não é para nós portugueses, e não é para a maioria dos portugueses. Portanto, ou há perspetivas de, a prazo, haver ajustamentos, reformas profundas na arquitetura do euro, coisa que até agora não se viu, nem se perfila com grande probabilidade, ou creio que é nossa obrigação, no mínimo, perspetivarmos a nossa vida num quadro diferente..Portanto, não deve ser fechada a porta, à partida, a uma saída do euro..Como digo, seja por motivos de, num momento de emergência, fazer face a um ajustamento sem ser através da violência que tivemos nos últimos anos, seja num quadro, numa perspetiva mais a prazo, eu creio que o conjunto do país, não é o partido A ou o país B, creio que o conjunto do país, as instituições nacionais, deveria sempre manter em aberto o cenário de desenvolvimento deste país. E a questão da participação na moeda única deve estar em cima da mesa, até porque não vai depender, seguramente, apenas de nós a existência do euro para toda a eternidade. E, portanto, nem que seja por isso, pela necessidade de imaginarmos um cenário em que, por razões que nos são estranhas, o euro deixa de existir na sua forma atual, creio que é uma questão de responsabilidade básica que as instituições portuguesas se preparem para esse cenário..Hoje estamos mais longe desse cenário. De facto, tem havido revisões em alta das previsões de crescimento para a economia. A economia está realmente a crescer mais que no passado, o Banco de Portugal aponta para 2,5%, o Presidente da República já falou de um número à volta de 3%... O que lhe perguntávamos é se este crescimento é sustentável ou não..Creio que há bons motivos para termos algum otimismo no curto prazo. E no curto prazo, eu digo, no prazo de um, dois anos, há motivos para termos algum otimismo e, em larga medida, os motivos que temos para este otimismo decorrem do choque profundo que foi a crise económica que se instalou em Portugal até 2013/2014. Nós estamos, de facto, num momento de grande otimismo, e a tendência nos momentos de grande otimismo é que esqueçamos a violência a que o país foi sujeito nos últimos anos. Deixem-me dar-vos alguns dados para percebermos o que é que estamos a falar. No final de 2016, e portanto já num período, os dois últimos trimestres de 2016 já foram momentos de grande crescimento económico de retoma... No final de 2016, o PIB em Portugal ainda estava 4,3% abaixo do que tinha sido em 2008. O emprego estava 8,5% abaixo do que tinha sido em 2008. O desemprego ainda estava 12,3% acima. O desemprego alargado, ou seja, se nós considerarmos não apenas as pessoas que estão estatisticamente desempregadas, mas aquelas pessoas que estão a trabalhar muito menos do que queriam e precisam de trabalhar, ou as pessoas que gostariam de trabalhar mas já desistiram porque já tentaram dezenas de vezes encontrar emprego e não conseguem, está 56% acima do que estava em 2008. Apesar de termos cerca de 500 mil desempregados, temos quase um milhão de pessoas nesta situação, chamado desemprego em sentido lato. A população ativa caiu quase 5% e, portanto, nós tivemos uma queda tão grande que não é muito difícil que no momento em que as coisas melhoram a recuperação seja relativamente rápida. Quando eu digo relativamente é por comparação aos anos anteriores. O investimento caiu mais de 30% em relação a 2008. Portanto, isto significa que, durante muitos anos, houve empresas, pessoas, o Estado, que simplesmente não investiram. É normal que haja necessidade de substituir máquinas, de atualizar máquinas, de pessoas que andam a adiar muitas decisões de compra de casa, que haja investimentos autárquicos que tenham de ser feitos, e de facto vimos que houve uma retoma muito significativa do investimento nestes últimos trimestres..Sobretudo no primeiro trimestre..Sobretudo no primeiro... Mas no último trimestre de 2016 já houve um sinal claro nesse sentido. Portanto a expectativa que eu tenho é que durante alguns trimestres esta dinâmica de retoma continue. Até porque há um aspeto auto cumulativo, a expectativa de que as coisas vão funcionar melhor faz com que as coisas funcionem melhor e portanto, durante algum tempo, este processo autoalimenta-se..A que é que se deve esse recente impulso no investimento? Está a ir à boleia de fundos europeus?.Tem a ver com vários aspetos. É importante, quando olhamos com atenção para os dados de investimento, repararmos que o investimento que está a crescer mais não é, necessariamente, o investimento típico que houve em Portugal com o investimento em construção. O investimento em equipamentos, no primeiro trimestre de 2017, cresceu quase 16%, que é praticamente o dobro da taxa de crescimento do investimento em construção. Isto significa que há uma retoma do ponto de vista da capacidade produtiva e todos os indicadores avançados sugerem que há aqui uma dinâmica muito positiva na indústria transformadora, que foi um sector que sofreu um choque muito severo nos últimos anos. Portanto, há aqui retoma que está a ser generalizada nos vários setores de atividade económica. Os fundos europeus ajudam, na medida em que estamos no momento em que as empresas começam a executar projetos que já estavam aprovados há um, dois, até três anos. E também há aqui um efeito quer de alguma predisposição do Estado para investir um bocadinho mais do que investiu no ano passado, como sabemos foi bastante pouco, mas, acima de tudo, há um crescimento na Europa. O peso das exportações para dentro da União Europeia voltou a aumentar no conjunto das exportações portuguesas, depois de terem reduzido, o que significa que a economia portuguesa está, como seria expectável, a crescer, em larga medida à boleia dos mercados europeus e as empresas estão a posicionar-se para vender nesses mercados, investindo em capacidade produtiva.