A audição anual da presidente do Banco Central Europeu (BCE) no Parlamento Europeu (PE), no âmbito do relatório de 2022 sobre as atividades da autoridade monetária vai ser marcada por casos algo incómodos, alguns mesmo polémicos.
O debate decorre esta quarta-feira, no PE em Estrasburgo, e entre os pontos mais sensíveis está um problema de "portas giratórias" detetado no BCE (um economista principal que saiu de Frankfurt para trabalhar num banco americano de alto perfil, o Morgan Stanley); o facto de o BCE ter contratado uma das maiores empresas mundiais de comércio eletrónico (a Amazon) para desenvolver o euro digital, a futura moeda virtual da zona euro (ainda em construção).
O debate acontece esta quarta, com a participação de Christine Lagarde, a presidente do BCE, mas muito mais tarde do que o previsto (estava agendado para as 15h, hora de França) devido a um protesto de um grupo de defensores da causa curda no interior do hemiciclo. O atraso nos trabalhos rondará agora mais de três horas.
Os manifestantes exigem a libertação de Abdullah Öcalan, o fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), detido há mais de 20 anos pela Turquia que o acusa de "terrorismo".
Voltando ao dossier BCE, o respetivo relatório será votado na quinta-feira (dia 16).
Além daqueles problemas emanados do banco central, os deputados vão levar a debate aquilo que consideram ser o grave risco de "fragmentação" da zona euro, tendo em conta que existe uma política única de juros do BCE para uma realidade que difere bastante entre países, nalguns casos abissalmente, seja nos níveis inflação, na dependência energética e proximidade da guerra, seja na resistência estrutural das economias à atual crise.
As mais endividadas, como Grécia, Itália, Portugal e Espanha, estão mais vulneráveis a mudanças súbitas nas taxas de juros, nos custos impostos pelos mercados e pelas mudanças de opinião das agências de ratings, por exemplo.
De acordo com o texto elaborado pelo eurodeputado Rasmus Andresen (relator principal, do Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia - Verdes/ALE), o PE "toma nota das regras para os funcionários do BCE sobre potenciais conflitos de interesses e incentiva a sua aplicação ambiciosa". Regista ainda "a revisão em curso do seu enquadramento ético".
"Portas giratórias"
Adicionalmente, o grupo de eurodeputados "destaca a decisão do Provedor de Justiça Europeu, de 26 de outubro de 2022, que faz recomendações a este respeito, em particular sobre "portas giratórias" no BCE.
Isto sucede "após o recente caso da saída de um economista sénior do BCE para se juntar a um banco de investimento americano". O caso refere-se à contratação do economista Jens Eisenschmidt pelo gigante financeiro Morgan Stanley, no início de 2022.
Segundo o jornal Politico, Eisenschmidt saiu do BCE em janeiro e em fevereiro já era economista no banco norte-americano, responsável por cobrir a economia europeia.
A transferência motivou apreensão pelos riscos que comporta e pela rapidez (menos de um mês de pausa entre empregos, entre setor público e privado). E até provocou uma tomada de decisão da Provedoria de Justiça europeia sobre o caso.
Assim, os deputados europeus, solicitam ao BCE "que o período de incompatibilidade [período de nojo, o intervalo de tempo entre saída da organização pública para a privada] aplicável aos níveis salariais superiores seja também alargado aos trabalhadores de escalões salariais mais baixos".
No mesmo documento, o PE "convida o BCE a desenvolver uma estratégia sobre como lidar com os lobistas e aumentar a transparência dos contactos a nível de pessoal além do que é exigido aos membros do conselho do BCE".
Amazongate
Outro caso a ser abordado é da Amazon. Aqui o grupo de parlamentares "lamenta profundamente a decisão do BCE de envolver a empresa Amazon na testagem de protótipos de interfaces para o euro digital".
A decisão do BCE em chamar a gigante liderada por Jeff Bezos preocupa porque "esta empresa é uma concorrente potencial neste domínio e não deve, portanto, ser colocada nessa posição, especialmente porque não recebe qualquer compensação monetária por esta missão".
"Salientamos ainda que a externalização da infraestrutura digital do euro para uma empresa tecnológica dos EUA enfraquece a autonomia estratégica da UE", alertam ainda os legisladores.
Uma política monetária para 20 países distintos
O PE afirma também que "está seriamente preocupado com o risco de fragmentação da zona euro devido às divergências nos níveis de inflação entre países, que vão de 25,2% na Estónia até 6,6% em França [em agosto de 2022]".
Dizem acreditar "que isto põe em perigo a unidade da política monetária do BCE e a sua transmissão" às diferentes economias reais.
Outra questão levantada é dos lucros muito elevados em alguns setores apoiados na subida muito forte da inflação, o que pode estar a agravar a inflação em si.
"Os lucros têm sido recentemente um contribuinte-chave para a inflação total e num grau superior ao que é a sua contribuição histórica, tal como foi assinalado por Isabel Schnabel, que integra o conselho executivo do BCE".
Assim, os deputados pedem que o BCE "publique regularmente dados sobre a contribuição da componente dos lucros para a inflação", notando que "a política monetária não é a resposta correta a esta contribuição para a inflação, nomeadamente casos de poder de mercado excessivo, que são melhor endereçados por outro tipo de políticas".
Recomendam também que o BCE seja mais claro a explicar e a apontar o que pode ser o rumo do custo do dinheiro e que justifique melhor as suas decisões, já que estas impactam na vida de mais de 340 milhões de pessoas, a população da zona euro.
Este relatório que monitoriza a atividade do BCE ao longo do ano passado foi elaborado por sete eurodeputados entre eles os relatores-sombra portugueses, Margarida Marques (Grupo dos Socialistas e Democratas (S&D), onde está o PS) e José Gusmão (Grupo A Esquerda, onde está o Bloco de Esquerda).
* Em Estrasburgo. O jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu.