Pedro Amaral Jorge: "Ganhamos muito se nos tornarmos na power house da Europa"

Representante das renováveis defende mais incentivos à transformação, para apressar segurança energética e ajudar quem menos pode. E considera fundamental melhorar e descentralizar licenciamentos para responder aos desafios que aí vêm.
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Pedro Amaral Jorge está à frente da APREN, Associação Portuguesa de Energia Renováveis, há quatro anos. Formado em Engenharia Mecânica no Técnico, desempenhou funções de especialista em estruturação e financiamento de projetos na vertente de investimento do setor privado para o African Development Bank, nas áreas de Infraestruturas, Energia e Água e Saneamento em África. Tem 20 anos de experiência profissional em posições de gestão de topo em grupos como a Indaqua, a Somague e a Mota/Engil.

Tivemos esta semana a Cimeira das Nações Unidas para os Oceanos com o assumir do compromisso de Portugal de construir e instalar 10 GigaWatts (GW) de eólica offshore até 2030. É uma meta possível?
É possível, mas temos de fazer o trabalho de casa para que o investimento seja exequível. Em primeiro lugar, há que esclarecer que este investimento será feito pelo setor privado, não pelo público, portanto será enquadrado na componente de energia das tarifas elétricas. E há três desafios. O primeiro é a definição em termos de locais onde, no mar, queremos instalar esta capacidade, se será em bloco, em duas ou três zonas, há que avaliar. Depois, temos de definir concretamente como se fará a ligação dos centros eletroprodutores até à rede elétrica em terra - o cabo até à subestação marítima e desta à de terra - e quem vai financiar a infraestrutura, sendo que nos países europeus é feito pelos equivalentes da REN, o operador da rede de transporte. E depois é preciso fazer os reforços da rede existente para absorverem estes 10GW que farão parte do baseload da carga elétrica diária. Acho que são exequíveis, então, mas temos de organizar essas coisas, simplificar o licenciamento - vamos ter licenciamento marítimo e elétrico para se poder instalar os centros eletroprodutores, e portanto temos de encarar que é preciso reforçar a DGEG, a APA... Nós instalámos, de 2000 a 2020, qualquer coisa como 10 a 12 GW de potência elétrica eólica, fotovoltaica, hídrica; agora temos de fazer pelo menos 25GW até 2030. Contando com esses 10GW de eólica offshore, mais os 9 na fotovoltaica e pelo menos 2GW de hídrica do Alto Tâmega, os parques e centrais que não estão licenciados, para tudo isto ser exequível é preciso reforço das instituições da Administração Pública afetas ao licenciamento. E não esquecer que temos de envolver os municípios, porque o território vai ser ocupado e há que encontrar uma equação social que seja a socialização de um bem que é a eletricidade renovável, mas que municípios e populações locais também beneficiem disso direta e indiretamente.

Era possível fazer mais? A Escócia, comparável na dimensão marítima, vai fazer 15GW...
Acho é que já temos uma incorporação renovável na produção elétrica muito significativa, acima do Reino Unido. Em média - tirando 2022 que é atípico - o nosso índice de hidraulicidade (fonte hídrica na matriz de consumo) representa em média 30% a 32% (estamos a 12%). E temos estado nos 65% de incorporação de renovável na eletricidade. Mas considerando a nossa base renovável significativa, que pode aumentar a competitividade do país e caminhar para a independência energética, os 10GW para a carga base seria suficiente tendo em conta que estamos a prever um consumo numa determinada estratégia de crescimento. Se o consumo elétrico aumentar e justificar mais investimento em eólica offshore, podemos aproximar-nos da Escócia. Mas não podemos esquecer este trabalho de casa, a lógica de uso de espaço marítimo, o reforço da rede elétrica de serviço publico, a simplificação de licenciamento e uma lógica de gestão de território.

Com tantos licenciamentos em perspetiva na produção de energia renovável será preciso novos pontos de acesso à rede... Isso está garantido?
A densificação da rede elétrica de serviço público para receber esta potência renovável é da competência do operador da rede de transporte e do operador do distribuidor, ou seja, a REN e a e-redes (ex-EDP Distribuição). Essas empresas têm planos bianuais, que são submetidos ao regulador, que as analisa, e depois são aprovados ou rejeitados e discutidos no Parlamento. Nós vamos ter de aumentar investimento na rede elétrica de serviço público para absorver toda esta potência nova. A vantagem dela é que em vez de estar em dois ou três pontos, à medida que vamos intensificando os centros eletroprodutores pelo país, vai-se espalhando a atividade económica, não ficando concentrada num ponto mas beneficiando economias locais e contribuições sociais e fiscais em todo o país.

Ganha capilaridade.
Sim e precisamos que a rede elétrica esteja em harmonia com a necessidade de instalar estes centros. A localização da disponibilidade de capacidade da rede elétrica tem sido uma restrição à instalação dos pontos, portanto se queremos caminhar agora com o REpowerEU, massivamente, com o grande objetivo da independência dos combustíveis fósseis, primeiros dos russos e a prazo para ter autonomia, segurança de abastecimento e segurança energética, então o movimento é fundamental: densificar a rede elétrica de serviço público.

E quem deve pagar isso?
Vai sempre pagar o consumidor. A tarifa da eletricidade tem uma parcela que é a componente da energia, outra das redes e outra dos custos de interesse económico gerais mais impostos. Não podemos esquecer porém que quando aumentamos preços de eletricidade o IVA também sobe e traz mais receita fiscal, mas no fim é sempre o consumidor que vai pagar o investimento, porque cá temos o principio do utilizador pagador - também é assim na água, nos resíduos sólidos...

Então os preços vão subir.
Não, porque a componente da energia é expectável que se reduza enquanto a das redes aumente e no final, em termos de índice de acessibilidade económica para empresas e famílias e da componente que isto tem no PIB, em termos relativos não se alteraria.

Deve então mudar-se a fórmula de cálculo da ERSE?
Não, a fórmula é a mesma, mas o cálculo dos componentes que chegam, essas três parcelas, reduz-se na energia pela componente da renováveis e na de rede aumenta. E esse valor final a preços reais deve manter-se constante na proporção dos rendimentos das famílias e empresas.

E com tantos licenciamentos até 2030, data do fim do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), o estado local e central vai ter capacidade de licenciamento?
Não. Hoje, para o que são as novas metas, há subdimensionamento na DGEG, na APA, no ICNF. Todas essas instituições terão de adequar-se à capacidade de processar o que é hoje necessário. Se eu tiver uma fábrica de caricas que faz mil por dia no limite de produção e de um para outro momento tiver de fazer 5mil e não aumentar capacidade da fábrica, trabalhadores e eficiência e otimização de processos, não vou cumprir. O que falamos aqui é isso: estávamos a licenciar qualquer coisa nas centenas de MW/ano e vamos começar a ter de licenciar milhares de MW/ano. Logo tem de se reforçar essas e outras instituições e também dinamizar uma cooperação com os municípios, seja através da ANMP ou outra, para capacitar os técnicos das autarquias a olhar esta nova realidade no território e a serem capazes de entender e ter confiança nas decisões que têm de tomar nesses processos de licenciamento locais.

Descentralizar a decisão para ser mais ágil.
Há três passos no licenciamento: o elétrico, o ambiental e o de construção. A competência desta é dos municípios, mas uma coisa é eu saber licenciar uma rotunda, um prédio, um polidesportivo... um centro eletroprodutor é novidade em muitos municípios.

As autarquias não estão capacitadas?
Não todas, não posso comparar Lisboa, Porto, Leiria ou Coimbra com as de baixa densidade nas Beiras, no Alentejo... essas terão de ter apoio de comunidades intermunicipais ou outras. É fundamental envolver o território, as pessoas que vivem nesses municípios, para que entendam que a entrada dos centros não é invasão do espaço mas a partilha de uma riqueza e de um benefício.

E o PNEC deveria ser alterado?
Vai ser de certeza, porque o PNEC é desenhado em linha com as primeiras metas do Clean Energy Package para todos os europeus, que tinha metas como reduzir emissões de gases em 40% com base a 1990, incorporar 28% a 30% de renováveis no consumo de energia final e metas de eficiência energética da mesma ordem. Passando ao Fit for 55 e agora com o REPowerEU, as licenças de emissão já têm de se reduzir no mínimo 55%, a eficiência energética vai aos 40% e para incorporação de renováveis a comissão propôs 45%. No consumo final, significa que temos de aumentar muito mais a eletrificação de consumos. O hidrogénio verde vai ter de ter aqui um papel quer na utilização direta quer como matéria-prima para combustíveis sintéticos de origem não biológica. A Península Ibérica será a região europeia com maior potencial renovável elétrico e para hidrogénio verde e a preços mais baixos, porque a sua complementaridade entre vento, ar e solo é tal que podemos chegar a custos nivelados mais baixos do que outros países.

Muito mais baixo?
Isso está projetado em curvas de futuros: em 2025, estamos 30% a 40% abaixo de França e Alemanha nos preços da eletricidade. Ou seja, se implementarmos todas as metas do pacote ecológico europeu e implementarmos o mecanismo de ajuste da entrada de carbono na UE aos setores críticos, todos os exportadores de fora da Europa que queiram vender à Europa vão pagar emissões de todos os seus produtos na fabricação e na logística. E o que é natural acontecer é que quando esses investidores que estão fora do espaço europeu quiserem continua a ter-nos como clientes de energia e de todos os bens e serviços intensivos em energia, vão entender que terão de investir no espaço europeu para não terem de pagar essas taxas. Isso criará um ciclo virtuoso económico - mais investimento, emprego, receita fiscal. E não só temos de entender se este consumo vai aumentar, porque se subir estes planos têm de ser alterados e já temos vários projetos a olhar para Portugal como tendo vantagem energética fruto da incorporação de renováveis. Já há consumos que não são crescimento incremental mas de grandes consumidores de energia que se instalam. Aumentando consumo e eficiência energética, as metas do PNEC terão de ser revistas e em muito alta. Já há estudos que apontam que em 2030 teremos de ter cerca de 40GW face aos previstos no PNEC (2019/20), que eram de 28.

Face a essas metas, estamos numa corrida contra o tempo e a burocracia do Estado?
Estamos numa corrida contra o tempo, mas uma coisa é burocracia outra incapacidade. A primeira sai de um conjunto de leis e diretivas transpostas - e não estamos a advogar que não fazemos licenciamentos e ou não cumprir regras ambientais, não preservar ecossistemas. Mas temos de aumentar a tal capacidade da fábrica de caricas. A capacidade de processamento das entidades centrais e locais.

Para que serve o Guia de Licenciamento de Projetos que estão a desenhar com a APA e a DGEG?
O guia é para podermos partilhar com essas entidades toda a experiencia que os associados eólicos e fotovoltaicos têm - e que já representa cerca de 5GW. Há empresas muito antigas no setor e também novos investidores com experiências concretas de licenciamento. A ideia é criar um canal de comunicação em que explicamos as dificuldades do lado do promotor e que o guia sirva como ferramenta que é um denominador comum a todas as interpretações possíveis do licenciamento. E uma vez acordado entre todos, que não surjam dúvidas e interpretações que podem ser arbitrárias e que todos entendam que ali está o entendimento comum de todas as parte de que atividade A é o que é, para fazer daquela forma, e não ficam ao livre arbítrio individual certas exigências que por vezes não são coerentes. O grande objetivo do guia é esse, ser uma ponte de comunicação, denominador comum de interpretação e de melhores práticas para acelerar processualmente. O aumento de capacidade das instituições, repito, já é tema que não nos compete. A nós, cabe ajudar naquilo que é o conhecimento que os eletroprodutores têm nestes processos e estamos sempre disponíveis para ajudar a acelerar a potência que tem de entrar no mercado. O REPowerEU indica, por exemplo, que temos de duplicar a produção de hidrogénio, portanto se eu duplico a produção tenho de aumentar também a potência renovável de acordo com o princípio de adicionalidade da UE. Não posso usar os produtores existentes, tenho de criar novos centros para produzir hidrogénio sem canibalizar o sistema elétrico. E o guia é a nossa contribuição, porque é do interesse de Estado e promotores que esses 40GW aconteçam.

Já disse que havia autarquias a aplicar taxas abusivas. Como?
Há um conjunto de autarquias que estão a criar regulamentos em que desincentivam a instalação de centros eletroprodutores no seu território. De acordo com o decreto-lei 15/2022 do sistema elétrico nacional, é muito claro o que os municípios podem fazer. Tudo o que se exige fora desse decreto é ilegal. Portanto a notícia de que Mogadouro pediu 3% da produção não faz sentido. Até porque não estava pensado na fase inicial de investimento - quando o capturo, tenho uma lógica de custos de operação e se lhes somo esses 3% a operação pode não ser viável. Depois, como os preços da eletricidade estão muito altos, parece que as renováveis estão milionárias e não é verdade, porque grande parte desta remuneração foi feita com PPA (contratos de longo prazo) ou, no caso dos 5GW de eólica, estão a entregar ao comercializador do último recurso a eletricidade a preço constante, qualquer coisa como 75 a 95 euros, quando o mercado está a 180/200. Esse ganho adicional de pegar na eletricidade e vender para o mercado ibérico reverte para o sistema elétrico nacional. Foi isso que permitiu que não se aumentasse tanto as tarifas de eletricidade, que se reduzisse tarifas de acesso à rede e até, em 2021, se cortasse 2 mil milhões à dívida tarifária. Há todo este efeito a ter em conta. Acho que temos de ter contribuições para os municípios, mas têm de ser conhecidas à partida, quando o projeto nasce, e não no final, quando está tudo analisado, financiado, estruturado e de repente vem custo adicional que muitos projetos não conseguem suprir. Isso atrasa ou até os inviabilizam.

Ainda há duas semanas tivemos aqui como convidado o presidente da CELPA, que pediu aos investidores em energia solar que cada árvore arrancada para instalar painéis seja substituída noutro lugar. O setor está disponível para este esforço no impacto do solar na floresta portuguesa?
Está e fá-lo. Muitos dos licenciamentos ambientais requerem que se determinadas árvores forem inutilizadas sejam replantadas noutro local. O que não afirmo com certeza é como isso se faz com os eucaliptos devido à degradação ambiental que provocam nos solos, com a seca, mas com as arvores autóctones já se faz.

O solar vai crescer como? Em terra ou em cima das albufeiras?
Em ambas. Temos de ter algo em mente: quando desligo o carvão porque além de poluir muito mais do que qualquer outra fonte fóssil começa a ter custos de produção de eletricidade muito mais caros do que qualquer renovável (licenças de emissão de CO2, estão nos 80 euros/tonelada), já não é só o impacto meganegativo ambiental, mas também a capacidade de vender essa eletricidade em mercado. Temos de substituir toda essa potência por um leque de hídrica, eólica, fotovoltaica, etc. E de usar portanto quer o solo quer as albufeiras para instalar esta potência solar, porque ela, em grande parte do ano na Península Ibérica, acompanha o consumo de água. Nas albufeiras, até há pouco a tecnologia era relativamente mais cara do que a que se instala em terra, mas provavelmente nivelará para custos de produção muito semelhantes. E tenho mais rendimento em albufeiras. Para fazer a otimização do território, temos de usar ambas e até mesmo - e já está testada essa tecnologia - olhar o fotovoltaico offshore, com mantas articuladas que podem produzir fotovoltaica e hibridização com parques eólicos offshore e aumentar a densidade de produção.

E será um solar para apoiar a produção de hidrogénio ou para eletrificar os consumos domésticos?
Isso dependerá do consumo, mas o hidrogénio verde, para ser competitivo, precisa de um portefólio em que tiremos proveito da capacidade que Portugal tem, fruto dos recursos naturais, de produzir eletricidade a custos muito baixos. Essa eletricidade é depois vendida no mercado - preço médio diário ao longo das horas do dia, o preço horário é que é relevante para eu decidir a que horas trabalho, a que horas é que preciso de consumir eletricidade. A ideia é que toda essa matriz densificada traga o custo médio de produção para baixo, somando as parcelas que seriam idealmente 1/3 de cada (hídrico, fotovoltaico, eólica, quer em terra quer no mar) e criar este baseload. E penso que assim o acréscimo de potência vai ser para os consumos adicionais que venham a ser integrados.
Se tivermos ambições no hidrogénio verde, porque temos condições de o fazer - não vamos abastecer nunca a Europa toda, mas podemos beneficiar quer em espaço ibérico quer em atração de investimento que precisa de hidrogénio verde de fontes renováveis para bens e serviços -, esse aumento será para consumo doméstico e para empresarial. O que vemos hoje é que os grandes aumentos não incrementais, saltos de consumo, têm que ver com projetos que olham Portugal como local onde podem ser competitivos do ponto vista dos energéticos que têm de consumir. E assim vamos eletrificar a mobilidade, os consumos de casa - caldeiras a gás e fogões vão ser continuamente mudado para eletricidade - e isso traz consumo incremental; mas os saltos de 4% ou 5% do consumo nacional são os grandes projetos.

E a aposta no hidrogénio com tantos potenciais investidores interessados é para levar a sério?
As intenções de investimento começam por ser intenções, mas começam a envolver financiamento, tecnologia, compromissos para comprar equipamento e nessa fase a que chegámos entendo que seja a sério, porque já implica esses compromissos em que há custos. Se não avançar, o dinheiro perde-se.

A Guerra na Ucrânia fez a Europa olhar para a sua dependência energética. O plano REPowerEU é suficiente?
O plano é a primeira medida que a CE toma, logo a 8 de março, a dizer: há um problema, sabemo-lo e temos de o resolver. Mas não se resolve num ano, então que caminhos temos em macrolinhas? Temos de reduzir o consumo de gás, essencialmente, que vem da Rússia. Temos o Nord Stream com a Alemanha como maior consumidor da Europa a 27 e que tem de arranjar soluções, mas a logística é complexa e demora, ainda que seja feita aceleradamente. Nós vamos reduzir consumo de fósseis russos e com isso aumentar a matriz renovável, tentar descarbonizar a indústria com produção de hidrogénio verde e combustíveis sintéticos ou metano sintético, não biológico, e com isso começar a suprir essas necessidades. O REPowerEU é um primeiro passo, e uma mensagem política, porque muita gente diz que isto vai inverter a tendência da transição energética. Eu acho o oposto: se queremos ser independentes e ter segurança de abastecimento sem perder competitividade nas indústrias e bem-estar das famílias, temos de arranjar solução energética que não faça disparar custos. E a única forma é planificar o que vai ser a eletrificação de consumos, produção de eletricidade a partir de renováveis e incorporar aqui um combustível - que tem de ser o hidrogénio e todos os subsequentes. Dirão que tem baixíssimas eficiências. Eu também sei isso, mas quando a função-objetivo é não aumentar a temperatura do planeta e descarbonizar, não posso comparar soluções que não têm restrições. Quando se vê o crime ambiental que gera emissões desmesuradas, o impacto nas alterações climáticas e destas em mil milhões de pessoas que vão sofrer inundações, desertificação, etc., não se pode fazer essa comparação. A função-objetivo aqui não é eficiência, é descarbonização, competitividade e bem-estar da sociedade. O gás natural é um gás de transição - com índices de poluição 50% a 60% inferiores ao carvão - portanto é impensável pensar que não o vamos usar como combustível de transição até que o hidrogénio verde e combustíveis sintéticos consigam suprir essa procura. A grande vantagem deste modelo é que passamos a ser energeticamente independentes (o que a Europa nunca foi), a controlar os custos energéticos (quando começo a ter produção renovável não tenho custos variáveis, não estou sujeito a especulação de commodities, consigo planear custos de energia e integração dessa energia no mercado de forma planeada, porque só tem o custo fixo. Por enquanto, solo, ar e água são de utilização gratuita, não têm emissões de poluição, logo só tenho custos fixos e financeiros e com isso consigo projetar o crescimento da minha economia de forma previsível.

Podia haver mais incentivos nomeadamente fiscais para a transição ser mais rápida?
Temos de ter, do ponto de vista dos consumos domésticos, incentivos e apoios para que as pessoas tenham capacidade de migrar das suas soluções energéticas para consumos elétricos - e nem todas as famílias têm essa capacidade. Pode haver deduções fiscais e apoios diretos à compra de equipamentos que se repercutem num ganho da sociedade. Do ponto de vista empresarial é o mesmo: os empresários já entenderam que as soluções de autoconsumo lhes permitem reduzir a fatura da eletricidade, mas há caminho a fazer. Portanto precisamos de incentivos fiscais à transição, mas temos de ser realistas também e perceber que o nosso rácio de dívida pública sobre o PIB não é o da Dinamarca ou da Holanda. Precisamos de Portugal, mas certamente haverá também financiamento europeu, como vimos no PRR, e em covid, com a mutualização da dívida no espaço europeu.

O PRR ajuda?
Não queria muito ir por aí, porque acho que podia ter sido desenhado de forma diferente, envolvendo grande parte de investimentos no setor privado diretamente, em vez de investimentos públicos a contratar o privado. Há medidas que deviam ter sido feitas de outra forma, usar parte para aumentar a rede elétrica de serviço público, por exemplo - e talvez façamos parte, mas não o bolo total. E temos de ver se haverá reforço de linhas, a CE já desviou parte do PRR para a transição energética. Vamos aguardar a ver se em 2023 haverá aumento do pacote de financiamento para os países aumentarem ainda mais a transformação energética.

Portugal pode ser um produtor elétrico para a Europa?
É absolutamente possível, quer em eletricidade quer combustíveis sintéticos e hidrogénio verde. Mas temos uma restrição entre Península Ibérica e a fronteira francesa. Durante muitos anos essa interligação vem sendo discutida e voltou à discussão quando começámos com a guerra na Ucrânia e o REPowerEU trouxe a vontade de um mercado europeu equilibrado e com vantagem para todos os europeus na segurança de abastecimento, no custo da energia... Temos condições de exportar os energéticos para a Europa. Mas há aqui uma equação também importante: se transformarmos a Península Ibérica na power house elétrica e de hidrogénio verde da Europa, vamos ter efetivamente todo um grande beneficio ibérico na captação de investimento estrangeiro, não só para a transição energética nos centros eletroprodutores como no aumento de investimento que resultará de empresas que vêm de fora ou até de dentro do espaço europeu, porque os energéticos aqui são mais baratos e isso lhes traz vantagem competitiva na estrutura de custos. É importante exportar a energia e a ibéria tem condições para isso, mas se calhar outro modelo seria não exportar diretamente, mas com bens e serviços para a Europa cujo insumo é energia competitiva. Ambos os modelos são bons para Portugal.

Está preocupado com o inverno que aí vem? Há capacidade para nos aquecermos?
Claro que estou preocupado. À media que vamos tendo alterações climáticas mais acentuadas, como já tivemos anos de ondas de calor que aumentaram o consumo de eletricidade para o ar condicionado desmesuradamente, podemos vir a ter ondas de frio. E no norte da Europa a temperatura média não é a nossa. Nós passamos dificuldades energéticas mas as condições climáticas, as temperaturas aqui no verão e inverno, são melhores. E preocupa-me de várias formas, porque a energia será necessária não só para o conforto térmico dos europeus mas para manter também a produção industrial - não podemos esquecer que esta guerra tem uma componente económica e financeira muito acentuada. Temos de manter a competitividade e a capacidade de produção das indústrias do espaço europeu e da UE. Por isso, preocupa-me que venhamos a ter disputas de gás entre output económico e conforto térmico das pessoas. Por isso tem de se acelerar a eletrificação do consumo com medidas próprias, mudar parte desse consumo de gás para a eletricidade e continuar a aumentar a potência instalada renovável, encontrando uma solução com gás natural liquefeito e centrais combinadas - gás que venha não da Rússia mas de multi-geografias: EUA, Nigéria, Qatar, arranjar um portefólio em que não fiquemos tão dependentes de um único centro geopolítico.

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