Pedro Marques é economista e foi ministro do Planeamento e das Infraestruturas no primeiro governo de António Costa. Há três anos que é eurodeputado pelo PS, qualidade em que foi eleito em dezembro vice-presidente do Grupo dos Socialistas e Democratas do Parlamento Europeu. Neste grupo ele tem o pelouro da Relações Externas e da Ação Social e é membro efetivo da Comissão de Economia do Parlamento Europeu bem como do grupo de contacto com a Ucrânia. Os apoios desenhados para amaciar os impactos das crises que a Europa enfrenta têm sido uma das áreas em que mais tem trabalhado na Europa.
Bruxelas propôs nesta semana a suspensão das regras orçamentais em 2023, o ministro das Finanças de Portugal, Fernando Medina, veio dizer que Portugal não precisa desta flexibilização. Acredita?
Esta flexibilização foi uma boa notícia. Nem todos os Estados estão na situação de Portugal, quer nas finanças públicas quer no crescimento, e estarmos a cortar défices, a acelerar austeridade numa fase de total incerteza como a que ainda vivemos, agora por causa da guerra na Ucrânia, não fazia sentido. Reclamámos isto mesmo, no Parlamento Europeu, e foi bom que tivesse havido essa proposta. Portugal está de facto numa boa posição, muito acima da média europeia - com um crescimento que é o maior da UE no primeiro trimestre e uma perspetiva de défice deste ano bem abaixo dos 3% e com a trajetória de redução da dívida pública bastante favorável. Porventura o ministro das Finanças tem razão, não seria necessário para Portugal, mas é-o para o conjunto da Europa. Precisamos de margem para continuar a usar a política orçamental. Até porque agora é muito mais difícil usá-la, Lagarde tem menos ferramentas com a inflação tão elevada.
Tem dito na sua coluna de opinião no Diário de Notícias que "prolongar a suspensão das regras orçamentais europeias não é suficiente". O que se pode fazer mais?
Tendo em conta que temos essa menor margem na política monetária por causa do contexto de inflação, precisamos desse prolongamento de flexibilidade e de mais resposta europeia à situação atual. Não podemos ter todo o ónus da situação económica e social europeia atual sobre os orçamentos dos Estados-membros. Não faz sentido. Até porque a crise é assimétrica, ao contrário do que aconteceu na covid, nomeadamente por causa da energia, porque há países muito mais dependentes da energia russa, porque a permanência de refugiados no espaço europeu está muito mais concentrada nos países de fronteira com a Ucrânia. Faz por isso, para nós, enquanto família política - e já conseguimos que passasse a ser proposta de todo o PE -, uma resposta europeia coordenada às consequências económicas e sociais da crise. Para dar uma ideia, as contas que temos à situação de 2015 na Alemanha, com os refugiados sírios, indicam que precisaremos de 10 mil milhões de ano por ano por milhão de refugiados que permaneçam na Europa. Os números podem variar um pouco porque as pessoas entram e saem da Ucrânia, mas teremos 3 a 4 milhões de refugiados no espaço da UE e muitos permanecerão, porque as cidades deles estão devastadas: mesmo que pudesse regressar a paz no imediato, as cidades estão destruídas, não há onde voltar. Portanto é esta a dimensão do esforço que temos pela frente. Esta é uma crise muito maior em relação aos refugiados e temos de ser solidários com estas pessoas, isto não faz sentido que caia em cima da Polónia ou da Hungria, mesmo que esses países não tenham sido muito solidários na crise anterior. É preciso coerência e solidariedade europeia. Há outra realidade muito importante e também assimétrica que é a da pobreza energética, em particular com a aproximação do inverno vários países, nomeadamente do Leste, vão sofrer. As pessoas simplesmente não poderão pagar a fatura para poderem aquecer as casas. Não é uma realidade para nós, embora estejamos a sofrer os aumentos do preço dos combustíveis, mas para esses países é mais do que isso, é o aquecimento das casas.
E pode haver até cortes de abastecimento?
Sabemos que há esse risco. A dificuldade das fontes alternativas é real e só se resolve gradualmente, a passagem para as renováveis não é feita de um dia para outro, portanto são dezenas de milhar de milhões de euros só para apoiar as famílias europeias mais necessitadas. Nós temos defendido um programa europeu de resposta em particular a estas consequências sociais mais fortes e também às consequências económicas das PME, por uma razão que me parece fácil de explicar: nós queremos continuar a aumentar a pressão sobre a Rússia e estamos a discutir o pacote de sanções que inclui as restrições na compra de petróleo e produtos derivados de petróleo. Acontece que, à medida que aumentamos essas sanções, as consequências sobre famílias e empresas também sobem. Será brutal o efeito nas contas externas da Rússia se conseguirmos fazer um congelamento total das importações de produtos petrolíferos, mas isso também provocará aumento adicional nos preços dos derivados. Portanto, se queremos manter a coesão dos europeus no apoio que damos à Ucrânia, deve ser aumentado o apoio para fazer face à situação económica e social aqui na Europa. Claro que a situação dos ucranianos é muito pior do que a nossa, mas há muitos europeus que já estão e vão sofrer mais, em particular no inverno. É possível e desejável que se implemente um programa europeu de resposta.
Mas como se faz?
Olhe, como já foi feito pelos italianos, e de certa forma aqui em Portugal, mas que tem sido feito país a país e tem de ser uma resposta europeia. Ainda nesta semana ouvi uma proposta: o governo do Reino Unido - mesmo se Boris Johnson o faz para tentar encontrar escapatória à sua situação política impossível - propõe que se discuta um imposto extraordinário sobre lucros extra do setor energético para financiar um programa de resposta social à situação das famílias britânicas. Isto fez-se em Itália, nós estamos a apoiar as famílias, mas sem essas receitas coordenadas a nível europeu, essa discussão não se pode fazer em toda e para toda a Europa, de forma coordenada. Para que os europeus sintam que não lhes faltamos num momento em que as consequências da resposta à guerra chegam às suas vidas.
E esse programa europeu de resposta pode ir além da fiscalidade, aos lucros excessivos das petrolíferas, pode ser alavancado no programa de apoio do BCE? Ou seja, a compra de dívida devia continuar (está anunciado o fim já para julho)?
Se eu dissesse o que desejo, era que continuasse a haver espaço para esse tipo de intervenção. Mas se acho que esse espaço existe: tenho dúvidas. Porque o contexto inflacionista é complexo, a inflação core da UE é muito mais baixa do que a dos EUA, há aqui muita inflação importada, que tem que ver com a crise da energia. A inflação relacionada com a energia está na ordem dos 40% a nível europeu, são valores elevadíssimos e que explicam a quase totalidade da inflação europeia. Mas isso dá muito menos margem de atuação ao BCE para atuar como atuou, e bem, na resposta à crise covid. Por isso, havendo mais limitações à política monetária, temos de agir ao nível da política orçamental. E julgo que o devemos fazer coordenadamente e procurando recursos para que seja financiada de modo justo. Como alguns países têm feito e a CE recomendou no início da guerra, podemos procurar fontes de financiamento como essa.
E a Europa precisa mobilizar novos recursos além do Next Generation Europe (NGE)?
Sim, o NGE ainda tem uma margem importante por usar, os fundos tradicionais de coesão, nomeadamente o nosso PT2030, têm margem, temos ainda a grande parte da fatia relativa a empréstimos do NextGen por usar em muitos Estados. Esses recursos podem ser utilizados, mas são finitos. Além do que os países têm agora mais incentivos a usar esses recursos, os tais 200 mil milhões não utilizados, para os fins já previstos - o ambiente de taxas de juro também já não é o mesmo. Se não for usada, então essa margem deve sê-lo para a nossa autonomia energética, para apoio às empresas neste contexto difícil. O governo português, e muito bem, lançou uma linha de crédito extraordinária de 400 milhões...
Era preciso uma bazuca 2.0?
A questão é que estes recursos são finitos, até porque já temos destino para eles - em particular no nosso caso, em que já estamos a aplicar o PRR. Não podemos agora pôr em causa todas as reformas pensadas. E quer pela pobreza energética quer pelo apoio aos refugiados, vamos ter de encontrar mais recursos. O vice-presidente da CE dizia há dias que provavelmente teremos de revisitar toda a questão da arquitetura orçamental europeia, porque estamos perante um novo e enorme desafio que a Europa devia enfrentar em conjunto.
O grande elefante na sala europeia, é mesmo a inflação. Já chegou aos dois dígitos nalguns Estados-membros como é o caso dos 19% da Estónia. É preocupante este caminho?
Os níveis que temos são distintos dos que se verificam nos EUA e têm razões distintas. A nossa inflação de base, excluídos efeitos externos extraordinários, como a importação da energia, é bastante mais baixa. E o BCE considera que em um ano ou dois pode haver de novo convergência para os 2% na nossa inflação. Ainda assim, os valores são elevados e começam a fazer diferença significativa na vida das pessoas. Na questão da energia, já se repercute sobre toda a gente nos combustíveis, temos um efeito significativo nos preços dos bens alimentares, começamos a ouvir falar de efeitos noutros setores para os quais os custos da energia e transporte são grandes (construção, por exemplo), portanto este nível de inflação será particularmente complicado se se prolongar no tempo. A incerteza desta guerra e desta crise energética é muito grande, sobretudo com o prolongar do conflito. Se for possível interromper a guerra mais cedo e regressarmos a alguma estabilidade nos preços da energia, o próximo ano será mais suportável, se não, se esta inflação se prolongar, o nível de vida das pessoas será muito afetado, nomeadamente com o aumento do preço das rendas das casas no início do ano.
Mas como é que a energia pode estabilizar se, necessariamente, um dos maiores fornecedores da Europa estará fora do sistema e a transformação energética vai demorar anos?
Há um efeito grande nestes preços da energia que tem que ver com incerteza, uma parte vem da restrição na oferta, mas também há muita incerteza.
Mas isso não desaparece assim...
A incerteza pode alterar-se se tivermos um quadro previsível de trajetória de diversificação das fontes de abastecimento e se a guerra estabilizar. Eu não digo que os preços vão baixar...
Mas podemos por exemplo procurar alternativas de abastecimento nos EUA...
É o que estamos a tentar, sim. E à medida que formos mais lestos nesse encontrar de alternativas, nomeadamente com gás dos EUA, com terminais na Península Ibérica, e conseguirmos fazer chegar o gás ao centro da Europa seja por pipelines seja por transshipment em desenvolvimento, todas essas ferramentas serão úteis para conseguirmos estabilizar a situação para o futuro. Também estamos a ter aqui efeitos colaterais no preço da eletricidade devido aos mecanismos da formação de preço que vêm do gás... há vários mecanismos que podemos usar. A avaliação ao mecanismo de preço da eletricidade proposta por Portugal e Espanha também mostra que podemos ter impacto nos preços da energia. Estamos a fazer caminho, os preços não baixarão de hoje para amanhã, mas temos de garantir que não continuam a subir. Se garantimos alguma estabilidade e se conseguimos colocar no mix outras fontes energéticas de forma mais acelerada - desde logo as renováveis... É muito importante acelerar o processo de mudança, mesmo que não seja para já. Vai certamente demorar alguns anos.
Mas substituir o Nordstream pelo "southstream" era uma solução que o lóbi francês viabilizaria?
No Conselho de Versalhes tomámos uma quantidade de decisões ao mais alto nível sobre a nossa autonomia estratégica que têm agora de ter concretização e podem dar mais um passo na segunda-feira, no conselho extraordinário. São processos que demoram, mas decidimos e espero eu, todos queremos - certamente o primeiro-ministro António Costa, que há anos batalha por isto - que o atravessamento dos Pirenéus seja finalmente uma realidade. Nós e os espanhóis temos uma capacidade sobrante grande dos nossos terminais de gás líquido e que pode ser ampliada, mas temos um bottleneck dos Pirenéus. No passado, nomeadamente pela energia nuclear em França, fomos encontrando obstáculos a conseguir exportar esse gás para o centro da Europa. Mas diria que o presidente Macron, um dos grandes defensores da autonomia estratégica e desta nova abordagem, perderia todo o suporte até dos líderes da Península Ibérica, se agora não fosse consequente e não permitisse fazer o atravessamento.
Se as condições de vida continuarem a degradar-se, a paz social pode desaparecer - sobretudo com as diferenças entre o poder de compra do Norte e do Sul da Europa. Que tipo de medidas está a ser trabalhado a nível europeu para enfrentar esses riscos?
Os países já começaram a tomar medidas, o que do lado do Parlamento Europeu (PE) começámos a advogar e espero que faça caminho - já não é só a minha família politica a reclamá-lo, é praticamente todo o PE. É esta lógica de um programa europeu para resposta à situação económica e social. Que responda a famílias e trabalhadores. Precisamos pelo menos de um programa que faça de almofada à situação dos mais vulneráveis à crise energética, e temos de dar espaço à contratação coletiva para que opere e faça o seu papel relativamente à situação dos trabalhadores e do poder de compra. No próximo ano é isso que terá de fazer caminho. Mas do lado dos governos, tendo em conta as condições em que estamos, a ação correta é tentar agir nos preços da energia como se tem feito, como aqui se fez com o ISP, como se fez com a medida que Portugal e Espanha apresentaram à Europa para repensar a formação de preços da eletricidade, e medidas que apoiem as famílias mais vulneráveis nas consequências diretas desta crise. Agora agimos mais sobre os preços dos combustíveis, no inverno será certamente o aquecimento das casas no Leste europeu e muito provavelmente a questão das rendas em toda a Europa - que estão indexadas à inflação, o que pode ter um efeito grande nos rendimentos das famílias.
Não há risco de as empresas despedirem por não conseguirem funcionar dados os preços? Há também medidas a esse nível?
Sim, já foram adotadas também, com novas linhas de crédito, e pode ser feito mais. Tive uma abordagem interessante com Elisa Ferreira até com os mecanismos de empréstimo mais próximas do NextGen, de forma a usá-los de forma articulada com os fundos de coesão - estes darem a parte de garantia e os empréstimos serem mobilizados através dos fundos. Isto é possível e desejável. Há, de facto, empresas que ganham com esta crise e podem ajudar a resolver o problema, mas a esmagadora maioria está em situação de risco e temos de fazer todo o possível para que possam ser ajudadas. Linhas de crédito com carências de um ano e outros instrumentos semelhantes devem ser viabilizados, as medidas que o governo português trouxe para ajudar as empresas de transportes são boas - até porque elas poderiam ter de repercutir isso no preço no resto da atividade económica. Há risco significativo sobre a atividade económica que deve ser minorado pelos governos. E faz pouco sentido que resposta seja casuística, deve ser coordenada a nível europeu. Até porque há questões como ajudas de Estado, que tem de se analisar, questões de concorrência europeia, há países que podem ajudar mais do que outros.
A Ucrânia pode ter esperança de uma adesão rápida à União Europeia?
Do meu ponto de vista, pode ter esperança e isso tem sido dito pelos líderes europeus, que deve ser acelerado o seu caminho em direção à Europa. É razoável que venha a acontecer mais cedo do que tarde o estatuto de país candidato à adesão. Neste momento, a CE está a analisar o dossier, deve concluir daqui a um mês e no conselho final da presidência francesa será analisado pelo conselho, a instituição competente em matéria de adesão. Do lado do PE já pedimos a atribuição do estatuto, achamos que faz sentido porque assim que aconteça a Ucrânia pode até ser ajudada financeira e tecnicamente nas reformas que terá de fazer para fazer o resto do caminho e há uma dimensão de integração no mercado único europeu que pode ser aprofundada. Já demos passos importantes nestes anos com a Ucrânia a fazer uma aproximação à Europa, acabámos de levantar todas as restrições às importações da Ucrânia, portanto estamos a fazer um esforço para garantir a aproximação ao projeto europeu, devemos fazê-lo. A adesão não acontecerá em pleno de um dia para o outro, mas a aproximação deve continuar e ter este espaço simbólico de país candidato.
Em relação a Portugal, a Comissão Europeia alerta que gastamos quase 12% do PIB a pagar salários da Administração Pública (AP), o que supera a média europeia. Está preocupado, para mais sabendo que o número de funcionários aumentou?
Temos de fazer escolhas. Neste período de resposta covid foi feita uma de reforçar o SNS com a contratação de milhares de profissionais e isso foi uma decisão correta. Portugal teve uma trajetória de grande sustentabilidade nas finanças públicas nos últimos anos, atingimos pela primeira vez superavit antes da covid com o governo de António Costa e temos condições para fazer escolhas de política pública que nunca deixarão de ser escolhas também de contenção. Desde logo porque temos uma dívida de 120% que temos de continuar a reduzir - e vínhamos a fazê-lo pré-covid - para nos dar mais escolhas de futuro. Mas em simultâneo, quando se coloca uma crise como a covid, os portugueses perceberam que valeu a pena o esforço de responsabilidade para trazer as contas públicas ao superavit, porque quando foi preciso mobilizar recursos financeiros e humanos para o SNS, Portugal estava em condições de o fazer.
Mas é despesa permanente.
Não foi o caso em todas as situações. Contrataram-se algumas pessoas de forma permanente e outras são temporárias. O SNS, veremos agora como se ajusta no pós-covid de forma estrutural, mas houve contratações. Há escolhas a fazer para o futuro, a AP do futuro não é a mesma de há dez anos, contará muito mais com recursos digitais até na interação com os cidadãos, mas tem de ser muito mais qualificada no pensamento estratégico sobre o país que queremos ser. Nós chegámos a uma situação, devido a restrições cegas no processo de consolidação orçamental do país ao longo de décadas, em que por vezes externalizamos a parte de pensamento estratégico dentro da AP e temos dentro do Estado contratadas as funções de menor qualificação; eu não acho correto o Estado, na parte do desenvolvimento estratégico das políticas, contar só com contratação externa, chamar consultores, então temos de ter recursos qualificados dentro da AP. Temos uma alteração brutal no perfil etário da educação - e estamos a ter bons resultados no abandono escolar, temos uma boa escola pública por comparação internacional, ótimos indicadores, mas só vamos ter isso com bons professores. E há muitos à beira da reforma; vamos ter de contratar e modernizar a escola pública.
Mas isso é substituir, não aumentar.
Significa substituição até em direção a uma escola diferente.
Mas faz sentido termos um recorde de funcionários públicos enquanto se caminha para a digitalização?
Nesta fase em concreto da crise covid aumentou-se muito o SNS, e corretamente, com alguns profissionais permanentes outros temporários. Terminada esta fase temos de ver como ficará o SNS. E aí foi uma parte da AP onde houve importante crescimento, mas foi assumido e consensual no país. Vamos começar discussões sobre o SNS que queremos, a vinculação dos funcionários, toda essa discussão está pela frente e veremos como se estrutura a AP no futuro. Mas a desqualificação da política pública também não é solução. Foi preciso um SNS de forte qualidade e confiança para termos este índice de resposta que nos colocou nos melhores patamares em resposta à covid.
A preocupação pelo aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN) não faz esquecer que o salário médio está a descer porque não há um efeito de arrastamento? Isso não cria desincentivos à melhoria das qualificações como avisou a Comissão Europeia na análise ao Orçamento do Estado?
Temos de ver os três patamares dessa questão. Há os salários muito baixos: Portugal tinha um risco de pobreza alto entre os trabalhadores e com o ciclo de aumentos de SMN que se conclui no próximo ano teremos uma subida de 50% numa década, o que é significativo, correto e permite diminuir desigualdades e pobreza no trabalho. Com certeza que nos salários médios, se não acompanharem o ritmo de crescimento, haverá uma compressão da diferença. Também quero olhar os rendimentos muito elevados e aí, ao nível europeu, tem de se ver, porque em particular desde o início da crise covid aumentaram significativamente as desigualdades na Europa porque os titulares de rendimentos muito muito altos, falo dos obscenamente elevados, são cada vez mais e não estão a ser suficientemente tributados. E as desigualdades também aumentam por essa via. Então, de forma coordenada, temos de olhar para isso. A situação dos salários médios, tem razão, tem de se alterar.
Como?
Não será porque o governo estala os dedos. O governo pode tomar medidas fiscais, como o IRS Jovem, que é um incentivo claro aos jovens com salários para terem um período de benefício fiscal significativo, reforçando a atratividade do país para esses quadros. O resto tem de vir da contratação coletiva e do funcionamento do mercado do trabalho. Antes da crise da guerra e ainda hoje, estamos com níveis recorde de emprego. Logo, e já há relatos disso, as empresas para recrutarem jovens qualificados já estão a elevar salários oferecidos. Essa é a forma sustentável de elevar rendimentos médios. E é o caminho previsto na discussão que se iniciou na concertação social. A discussão que se seguirá à Agenda do Trabalho Digno é a do Acordo de Rendimentos de Médio Prazo. O país precisa de estabilizar uma visão de médio prazo para os rendimentos que permita repor de forma sustentável o peso dos salários no PIB e reaproximá-lo da média europeia, contudo isso só se fará com envolvimento das empresas. À exceção do SMN, em que tem papel legislativo, não é o Estado que decreta os salários no setor privado.
Mas podia dar incentivos, reduzindo a carga fiscal sobre o trabalho a empresas que aumentem os trabalhadores.
O exemplo do IRS Jovem é bom.
Não estamos a falar destes salários.
Também pode abranger.
Mas não abrange maioritariamente.
Está para começar a discussão sobre o acordo de rendimentos, com o Estado à mesa, e certamente terá disponibilidade para utilizar política fiscal para promover bons incentivos.
Mas não tem havido margem para mexer nos custos de contexto.
Houve, sempre que nos últimos anos houve aumento do SMN houve incentivos do lado da TSU para as empresas suportarem parte do custo associado. Portanto pode vir para a mesa uma discussão que inclua o papel da política fiscal nesse esforço. Ainda assim, diz-nos a experiência, os grandes movimentos de evolução de salários médios têm duas componentes fundamentais: as competências (o padrão de especialização das economias) e a contratação coletiva. Portugal, nos últimos 20 anos, fez um caminho interessante que as estatísticas revelam de alteração do seu padrão de especialização e aumento das qualificações médias. Já ultrapassámos a média europeia na percentagem de jovens no primeiro ciclo do ensino superior, por exemplo. Fizemos essa transformação e há espaço, depois de anos importantes de alterações ao nosso mercado de trabalho - tínhamos muita proteção dos contratos permanentes e uma precariedade muito grande nos independentes e nos contratos a termo, tudo era motivo para contratar a termo; a proteção social dos independentes foi alterada, a Agenda do Trabalho Digno traz alterações também aos temporários, mexe nos trabalhadores das plataformas digitais, portanto elevámos as condições da componente mais frágil e tem todo o sentido que a próxima fase seja de forte promoção da contratação coletiva. Já modernizámos as condições da contratação coletiva com todo o acervo de legislação laboral da última década, mesmo com resistências da CGTP...
Era preciso agora serem os sindicatos a modernizar-se?
É preciso que toda a contratação se modernize, que os novos acordos coletivos sejam modernizados e num contexto até de escassez de mão-de-obra mas com aumento de qualificações dos trabalhadores faz todo o sentido que seja em sede de contratação coletiva que se encontre essa confluência entre a vontade dos trabalhadores de terem aumento de ganho médio e a das empresas de que isso corresponda a ganhos de produtividade. É o tempo para a discussão do acordo de rendimentos.
Outro dado passa pelo envelhecimento da população. Os saldos negativos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social estão previstos para o início da década de 2030. Com menos pessoas a descontar, a Segurança Social precisa diversificar as fontes de financiamento?
A ministra do Trabalho e da Segurança Social tem intenção de fazer um trabalho de avaliação das fontes de financiamento e da reforma da Segurança Social que se fez há 15 anos - e é normal, ao fim deste tempo, que se revisite essa reforma. A nossa Segurança Social está muito mais sólida hoje do que à entrada dessa reforma, foi-se adaptando ao envelhecimento da população com os mecanismos que tínhamos deixado na lei, o fundo de estabilização está incomparavelmente mais sólido. De facto a economia mudou e olhar para as fontes de financiamento, para a forma como se faz contribuições em função do trabalho, ver se outras fazem sentido, são discussões que começámos a ter no passado e que fazem sentido. Porque a economia mudou, as relações de trabalho alteraram-se, grande parte delas não é capturada e a formação de valor não está toda nos contratos tradicionais de trabalho. É importante que se revisite a Segurança Social com o conforto de sermos um país que alterou completamente o seu padrão de risco das finanças públicas em face do envelhecimento - isso fizemos estruturalmente há 15 anos.