Pedro Santa-Clara: “PRR tinha muito dinheiro para a educação avançada em termos digitais, mas estava todo pré-reservado”

Pedro Santa Clara considera que a bazuca europeia não nos vai permitir aproveitar todo o potencial de “inovação” no ensino, ao pré-destinar o financiamento “a meia dúzia de universidades públicas”.
Pedro Santa-Clara: “PRR tinha muito dinheiro para a educação avançada em termos digitais, mas estava todo pré-reservado”
Paulo Spranger
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O professor universitário e empreendedor que construiu a Nova SBE, a escola de programação 42 e o TUMO – que é um complemento na educação tecnológica para alunos dos 12 aos 18 anos – critica a ausência de estratégia para requalificação de competências profissionais, que será tanto mais urgente quanto mais acelerado é o crescimento a que assistimos do desenvolvimento tecnológico, nomeadamente da Inteligência Artificial. “Não temos instituições de educação preparadas fazer reskilling a toda a gente, nem sequer 10%” das pessoas, afirma. Pedro Santa Clara antecipa também que as “universidades vão atravessar um período muito difícil nos próximos anos, porque vai haver uma grande transformação tecnológica da educação”, para a qual não estão preparadas.

Já referiu em várias ocasiões que a tecnologia pode revolucionar a educação, nomeadamente através de modelos pedagógicos mais eficazes. Que exemplos concretos poderiam ser implementados em Portugal?

Estamos a falar daqueles que, obviamente, achamos que são dos exemplos concretos de ponta no mundo de melhor pedagogia apoiada pela tecnologia. Por um lado, o TUMO, para jovens dos 12 aos 18 anos que vêm, depois da escola e ao fim de semana, aprender as áreas que querem de tecnologias criativas. Desde a música, à fotografia, ao cinema, à animação, à programação, à robótica, ao design gráfico, com um modelo muito inspirador e transformador que usa a plataforma digital para conduzir o processo de aprendizagem que oscila entre momentos de autoaprendizagem, apoiada por learning coaches, e workshops dados por especialistas em cada uma destas áreas. A nossa capacidade para chegar a 1500 alunos em cada um destes centros depende crucialmente de haver uma plataforma digital sólida sobre a qual os alunos trabalham e que conduz o percurso de cada um deles e todo o portfólio que vão desenvolvendo. A escola 42 é talvez ainda mais dramática porque é um exemplo de uma escola que, mais uma vez, usa a tecnologia para desenvolver uma melhor pedagogia e é isto que nos interessa. Eu tenho sempre muito cuidado quando falo de tecnologia porque imediatamente se pensa em pessoas fechadas numa sala sozinhas à frente do computador. E quer o TUMO, quer a 42, são o oposto. Usamos tecnologia até para criar uma experiência de aprendizagem social muito mais intensa do que no ensino tradicional. Mas na 42, que é o ensino verdadeiramente superior, é uma escola de engenharia, de developers, uma das melhores escolas do mundo já em vários rankings, mais uma vez, há uma plataforma digital que conduz os alunos através de uma sucessão de desafios e depois cabe-lhes a eles a responsabilidade de ir procurar o conhecimento necessário para resolver os desafios por si e uns com os outros. E este modelo, quer o TUMO, quer a 42, que temos vindo a observar, é que é muito mais eficaz, leva a uma aprendizagem muito mais profunda nos temas, dá muito mais responsabilidade ao aluno, que tem de ter a iniciativa da sua aprendizagem. Isto muda tudo, muda a forma como se aprende. Ninguém está aqui a fazer um frete, ninguém está a aprender uma coisa ou outra porque tem de o fazer. Estão aqui porque escolheram fazê-lo, estão aqui com a sua dedicação, as horas do seu tempo a aprenderem as coisas que escolhem e a fazê-lo ao ritmo de cada um e chegando tão longe como formos capazes de fazê-lo.

Quer no TUMO, quer na 42, o ensino é gratuito para os alunos. É um desafio conseguirem ter investimento que garanta que 1500 alunos todos os anos possam ser formados?

É um desafio. Primeiro, explicar porque é importante ser gratuito: é importante porque temos em Portugal uma educação com profundas desigualdades. Portugal é um dos países com menor mobilidade social, talvez a menor da OCDE. Temos grandes desigualdades na educação básica e secundária, mesmo na educação obrigatória, já para não falar, obviamente, no ensino superior. Achamos que é fundamental, no caso do TUMO, ter uma escola gratuita que atraia alunos de uma enorme variedade de origens sociais e económicas, porque isso é chave para que nestas idades, dos teenagers [adolescentes], possam criar redes, partilhar as suas aspirações, aspirar a chegar mais longe. No caso da 42, aquilo que vemos é que muitos dos nossos alunos, mais de um terço, tiveram de deixar de estudar no fim do secundário por razões económicas; tiveram de ir trabalhar e encontram aqui a segunda oportunidade da vida deles. Estamos a falar de pessoas extraordinariamente talentosas e que vêm para esta escola porque é gratuita, está aberta 24 horas por dia, todos os dias do ano, pelo que podem fazer o programa a seu próprio ritmo, e é mais compatibilizável com a sua vida profissional e, obviamente, porque estão a aprender de uma forma mais apelativa, mais eficiente. Para dar uma ideia, na 42, entre Lisboa e Porto, hoje em dia temos mil alunos, somos a maior escola de engenharia de software do país. Até agora, temos tido 100% de empregabilidade. Em média, os nossos alunos quadruplicam o salário desde a entrada à saída. E custa, por ano, por aluno, um quarto do que custa uma escola tradicional, como o [Instituto Superior] Técnico ou a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

Quanto é que custa, por aluno?

Custa 1.500 a 2.000 euros, por ano. É muito eficiente. A BCG fez um estudo pro bono, há uns meses, em que calcula que o impacto económico da Escola 42 no PIB português é de 460 milhões de euros, em 10 anos, por via do acréscimo de salários dos alunos que por aqui passam. Estamos a falar de coisas muito relevantes, com um grande impacto, que são financiadas maioritariamente por privados, por empresas, por fundações, por pessoas em nome individual. Temos tido muito pouco financiamento público até agora. A Câmara Municipal do Porto apoiou a 42 Porto e a Câmara Municipal de Coimbra apoiou o TUMO Coimbra mas, até agora, é praticamente só isso. O que eu acho pena, porque estamos certamente a cumprir uma função social importante, a contribuir no desenvolvimento de recursos muito importantes para o país. Temos uma missão muito grande de inclusividade, de chegar a públicos que até agora estavam fora das oportunidades de aprendizagem a este nível, e isto é uma contribuição importante para as pessoas e para a economia do país.

Porque é que não atrai mais investimento público? Porque é que não é capaz de passar a mensagem dessa importância, ainda por cima com estudos que consubstanciam aquilo que é o crescimento económico?

É uma boa pergunta. Em alguns casos, sim, como eu disse, quer a Câmara Municipal do Porto, quer a Câmara Municipal de Coimbra, entenderam a importância destes projetos e souberam apoiá-los. A Câmara Municipal de Lisboa não conseguiu. Não conseguiu porque se perde em tricas políticas internas, em rivalidades, em disparates, e infelizmente, porque pensei que iríamos ter esse apoio e não conseguimos. O Estado central é pouco atento ao que se passa. Acho que temos muitas vezes uma perspetiva de desenvolvimento muito top-down. Há um burocrata que imagina que o país devia financiar a, b ou c e vamos fazê-lo, em vez de haver a preocupação de dizer que está aqui uma equipa com track record, com experiência, com capacidade de implementar, que escolheu fazer projetos que também estão a ser financiados por privados, vamos lá olhar para o que é que está aqui, vamos perceber que oportunidade é que está aqui, vamos capacitá-los, vamos levá-los mais longe. Nós somos por natureza burocratas e estamos num período extraordinário, não é? Com o PRR e o Portugal 2030, estamos a falar de dezenas de milhares de milhões de euros.

Vocês candidataram-se ao PRR?

Pois é, bem engraçado. Ganhámos um concurso do Portugal Inovação Social, relativamente pequeno, mas relevante para nós, mas o PRR tinha muito dinheiro para a educação avançada em termos digitais, esse dinheiro estava todo pré-reservado para meia dúzia de universidades públicas. A primeira linha do programa dizia: este financiamento destina-se exclusivamente a universidades com mais de x alunos, etc. E perdemos toda esta inovação, toda esta energia, toda esta capacidade de realizar. Nós temos uma pequena equipa, muito eficiente, com uma enorme preocupação em ser eficiente, que nos últimos 10, 12 anos fez o novo campus da Nova SBE, lançou a 42 em Lisboa e Porto, lançou o TUMO em Coimbra e Lisboa, vai abrir este ano no Porto e a seguir em outras cidades. Não estou a ser humilde, mas também não quero estar a armar-me em bom, mas temos uma equipa com uma capacidade de realização única no país, com uma eficiência e a capacidade de fazer projetos que escalam, como não há outra.

E podia crescer mais, podia ir para outras regiões do país se tivesse apoio?

Claro que sim.

É fácil de escalar?

Nada é nunca fácil. Obviamente, a experiência, a qualidade das pessoas ajudam a fazer muito. Neste tipo de projetos temos sempre duas dificuldades: encontrar um espaço adequado para se fazer – sobretudo em Lisboa e Porto é muito difícil; e, por outro lado, arranjar o financiamento para lançar os projetos. Mas estamos disponíveis para fazer mais, claro. Sabemos fazê-lo, queremos fazê-lo.

É professor catedrático, está habituado às universidades; este projeto que lidera não teria espaço nas universidades?

Acho que não, e tentámos no princípio. Ainda pensámos em albergar a 42 num edifício da Universidade Nova, mas não funcionou. Falámos até com várias universidades. Acho que as universidades vão atravessar um período muito difícil nos próximos anos, porque vai haver uma grande transformação tecnológica da educação. Passamos tantos milhares de horas sentados em salas de aula, temos dificuldade em pensar que a educação pode ser qualquer coisa diferente disso. Mas pode. E a tecnologia permite-nos construir melhores experiências de aprendizagem, melhores no sentido de mais eficazes e no sentido de mais económicas, mais baratas. E isto vai acontecer nos próximos anos, não tenho a menor dúvida. Estes dois exemplos, TUMO e 42, são importantes. Obviamente, a inteligência artificial permite-nos desenvolver tutores personalizados para cada aluno e isso vai ser uma transformação gigantesca. Agora, as nossas universidades têm dois problemas. Por um lado, têm um excesso de regulamentação. A A3ES, a agência que dá a acreditação das instituições e dos programas de ensino superior, é obrigada a olhar para critérios como o número de horas de aula por semana, o número de professores por aluno, que são indicadores absolutamente rígidos em relação ao que é o status quo da educação, que foram pensados para uma educação que acontece em sala de aula com professor e com alunos, fecha a porta à inovação. A 42 não podia ser uma licenciatura. Não seria aprovado.

Isto é um problema, o excesso de regulação impede a inovação.

Se tivéssemos dito há 20 anos, música é qualquer coisa que só pode ser ouvida ao vivo ou em vinil, teríamos deixado fora tudo o que aconteceu desde então.

O streaming não existia...

Na educação temos um problema parecido com esse: a regulação impede a inovação. O segundo problema das universidades, é que têm uma estrutura de governance péssima. Péssima. Cheia de conselhos: uma universidade tem um conselho geral, um conselho superior, tem um reitor, mas depois não é o reitor que nomeia os diretores das escolas – esses são eleitos pelos conselhos de faculdade – e depois também têm conselhos científicos. Temos uma proliferação de órgãos com responsabilidade importante das universidades, todos eles aparentemente muito democráticos, mas que de facto levam a que haja imensos grupos que possam bloquear qualquer mudança e levam a que não haja verdadeiramente responsabilização de alguém. É engraçado porque eu fiz a minha carreira nos Estados Unidos, na Universidade da Califórnia em Los Angeles, na UCLA. A Universidade da Califórnia é pública, é muito grande, com nove campus, entre os quais Berkeley, UCLA, San Diego e uma série de outros. Uma das melhores universidades públicas do mundo, muito grande, mas em que há accountability [responsabilidade], em que há o Board of Regents, responsável pela universidade no seu todo, que é quem nomeia os chancellors, uma espécie de reitores de cada uma destas universidades. Mas depois são esses chancellors que nomeiam os diretores das escolas, que são responsáveis.

Há mais autonomia?

Há muito mais autonomia, claro. Mas também há muito mais responsabilização. O chancellor de UCLA está a concorrer com Stanford, que é privada, e o Board of Regents vai-lhe pedir contas sobre a sua performance. Isto em Portugal não existe. É tudo fluido. É muito democrático, em certos aspetos, porque tudo é feito por eleição, mas sem verdadeira accountability perante a sociedade. Funciona muito em sentido fechado. O diretor é eleito pelos seus professores. É muito virado para dentro.

Portugal vive um problema de liderança?

Em muitas áreas, sim, porque temos medo quase da liderança. Achamos que liderança é uma palavra feia. É claro que nas empresas privadas há liderança. Há empresas muito boas e projetos extraordinariamente bons em Portugal, mas a coisa pública fica muito em autogestão, parecem cooperativas. Ninguém tem de prestar contas sobre o trabalho que faz.

E temos medo da revolução digital em Portugal, da revolução tecnológica, da revolução na educação?

A revolução digital e tecnológica está a acontecer todos os dias à nossa vista. Portugal, em certos aspetos, tem estado muito bem. Temos criado startups impressionantes, que crescem e que têm impacto, e isso é notável, mais do que vários outros países da União Europeia, que têm um impacto maior do que nós. As empresas e as indústrias, hoje em dia, são todas elas digitais, desde a indústria do vidro, à agricultura, a todos os serviços. Já não há indústria que não seja digital, e essa transformação está a acontecer de forma razoável. Quer dizer, esbarramos sempre em falta de recursos, e muitas vezes temos empresas demasiado pequenas para conseguirem fazer de forma eficiente estas transformações.

E está a acontecer no Estado também?

Vai tendo repentes. Há alturas em que fazemos coisas interessantes, mas depois pára tudo e esquecemos tudo.

Por causa das eleições?

Não, não sei. Acho que não sei explicar. Não sei mesmo explicar porque é que acontece, de vez em quando temos uns laivos de querer ser modernos e progressistas, e depois perdemos o gás e deixamos as coisas ficar para trás. É uma pena. Mas mesmo em termos europeus, estamos muito melhor do que um país como a Alemanha. Nós às vezes não temos essa perspetiva, porque achamos que a Alemanha é qualquer coisa de especial. A Alemanha é um país que ficou horrivelmente atrasado em toda a transformação digital, muito pior do que nós, quer de infraestrutura, quer de desenvolvimento de software. Portanto, vamos fazendo um caminho. Uma das razões para abrir a 42 é a falta de recursos humanos nesta área, que ainda é muito grande. Acho que a partir deste ano, a escola tem vindo a crescer até agora, a partir deste ano vamos estar a formar grandes números de engenheiros de software para o mercado, e espero que isso ajude a mexer a agulha. E é muito importante que as empresas, é óbvio que muitas nos conhecem, mas que todas nos conheçam e percebam que esta é uma escola importante onde têm de vir recrutar.

Quantos alunos vão libertar agora, este ano, para o mercado de trabalho?

Mais ou menos 300 por ano. E são 300 muito bons.

Diz isso porque o próprio modelo de aprendizagem na escola 42 está a formar profissionais para resolverem problemas nas empresas?

Sim, verdadeiramente. São muito bons programadores, sabem muito de software, mas aquilo que verdadeiramente é o core do que fazemos é treiná-los para resolver problemas – sozinhos e em equipa. Este é o treino mais importante. E há razão, porque as empresas que já cá recrutam, a Critical Techworks, que é o braço digital da BMW, uma joint venture da Critical Software com a BMW, já recrutou dezenas dos nossos alunos, e o feedback que temos é: “é isto que queremos, porque são pessoas a quem damos um desafio e que nos dizem não sei como fazê-lo, mas vou estudar, vou tentar, vou pedir ajuda. Se falhar, tento outra vez”. Esta competência tem um valor incalculável.

E essa competência pode desbloquear o potencial mais produtivo da nossa sociedade?

Espero que ajude. Não há nenhuma iniciativa individual que tenha esse poder, mas claramente umas centenas de profissionais muito bem formados nestas áreas a contribuírem para a economia, todos os anos, ajuda.

Mas a disrupção que pode acontecer na educação irá contribuir muito mais...

Sim, se acontecer.

Está cético em relação a isso?

Estou, porque aquilo que vimos sempre em todas as indústrias é uma grande dificuldade de os incumbentes se adaptarem a novas tecnologias. O caso clássico da Kodak, que na verdade seria muito fotografia digital, mas quando chega a altura é quase impossível transformar uma empresa daquela escala, mesmo com todo o poder que tinha. Como é que se transforma um gigante da fotografia analógica num inovador da fotografia digital? Não acontece. Estamos a ver agora os grandes construtores de automóveis europeus, nomeadamente os alemães, com uma grande dificuldade em competir no carro elétrico, que é uma empresa diferente do tradicional e em que são os americanos e os chineses que tomaram completamente a liderança. É muito difícil fazer essas transformações, sobretudo, como eu disse, quando existe muita regulação que praticamente impede a inovação e quando há pouca autonomia e quando o governance é virado para dentro. Porque nenhuma empresa quer mudar, mudar é penoso, mudar é duro, é difícil, uns ganham, outros perdem. Quando estamos virados para dentro, inevitavelmente o objetivo torna-se preservar o status quo. E ninguém inova nessas condições, obviamente. Mas ainda estamos no princípio e não sabemos como é que vai acontecer esta revolução. Se outras revoluções tecnológicas forem indicativas, os novos concorrentes da educação vão aparecer sem que nós liguemos muito.

Que novos concorrentes da educação são esses?

Vou dar um exemplo – se calhar, um bocadinho parvo, mas que acho que é importante. O Youtube hoje é um concorrente da educação. Toda a gente que queira aprender qualquer coisa, praticamente em qualquer tema, a primeira reação que tem é ir ao Youtube. Eu tenho a certeza que nenhuma escola vê o Youtube como concorrente. Agora, se aparecer um Youtube com capacidades de inteligência artificial que nos ajudem a medir o que nós sabemos e que entendam a forma que temos de aprender e que nos ajudam a aprender, e que se proporcione também uma experiência social, vai, de repente, aparecer uma experiência de educação para onde as pessoas migram suavemente. E um dia as escolas olham e dizem: “o que é que aconteceu? Não temos alunos. Coisa tão estranha”. E a reação, inevitavelmente, vai ser protecionista. O Estado tem de obrigar a que toda a gente passe por não sei o quê. Mas nessa altura é tarde demais.

E qual é que vai ser o papel da inteligência artificial nessa transformação?

Vai ser muito grande. É difícil dizer. Estamos no princípio e tem evoluído de forma tão rápida que é difícil de estimar. Mas um exemplo que acho muito interessante é o da Khan Academy, que é uma empresa que já tem mais de 10 anos. Foi uma iniciativa do Salman Khan. Começou como uma plataforma para dar explicações aos sobrinhos. Hoje, é muito grande. E tem um modelo de aprendizagem interessante, com conteúdos relativamente curtos, com testagem sucessiva, com aquilo a que se chama de Mastery Learning. Isto é, eu só posso passar para o nível seguinte quando tiver mestria no conhecimento. Só passo com 20, não passo nunca com 10. Agora tem o Khanmigo – ele começou cedo a trabalhar com a OpenAI e é baseado no ChatGPT – que é um tutor disponível para os alunos, que vai acompanhando a aprendizagem dos alunos, e vai aprendendo com eles, e que está lá não para dar explicações ou dar as respostas, mas para guiar o aluno. O aluno faz um erro e ele é capaz de dizer: “oh pá, já pensaste que podia ser isto ou aquilo, ou já pensaste assim”.

Mas pode ser muito mais do que isso.

Pode, permite ao aluno, por exemplo, em Literatura, que esteja a estudar um texto, interrogar os personagens do livro, ou o autor do livro. Permite assumir papéis muito diferentes, muitas vezes interessantes e ativos, na aprendizagem. E mais ainda: este tutor individual dos alunos pode reportar ao professor, para dizer do progresso do aluno e as dificuldades que o aluno tem. Conseguimos ter uma educação muito mais personalizada, em que os alunos podem evoluir ao seu próprio ritmo.

E combatem desigualdades?

Claro que combatem desigualdades. O fator mais importante no progresso académico dos alunos é a educação dos pais. Se eu tiver em casa os pais que me podem explicar o problema de trigonometria, é muito diferente de não ter. Por isso, agora, isso deixa de depender dos pais. Porque este tutor pode estar disponível para toda a gente. É um grande contributo para diminuir as desigualdades. Mas quero também enfatizar esta ideia de que temos capacidades diferentes, interesses diferentes, podemos evoluir a velocidades diferentes. O sistema que nós temos, dos alunos divididos por anos e por turmas, a aprender as mesmas coisas ao mesmo ritmo, não é bom. Isto é porque durante muitos anos foi o único possível. Mas não é, do ponto de vista pedagógico, eficiente. Nós podemos construir processos de aprendizagem muito mais interessantes. Mais uma vez, o TUMO e a 42 são bons exemplos disso.

Com o avanço da inteligência artificial, como devemos abordar os desafios éticos na educação e no trabalho?

Acho que há muitos desafios éticos, como em tudo o que acontece na vida. No caso da inteligência artificial, temos falado muito do problema das alucinações, do problema de haver enviesamentos na forma como são treinados estes modelos. Mas há enviesamentos nas pessoas também. Se em vez de um sistema tiver uma pessoa, não é por isso menos enviesado. O que a utilização destes sistemas exige é um grande sentido crítico das pessoas, uma grande capacidade de entender o que o computador faz ou não faz, e os problemas que pode ter. O que está a acontecer agora, é uma clivagem muito grande entre os trabalhadores que usam ferramentas de inteligência artificial e os que não usam. Portanto, este tem sido um problema que nos preocupa. Na 42, criámos um programa chamado AI Dive for Business, que estamos a fazer com empresas, em que trazemos grupos de dezenas de colaboradores da empresa para uma experiência muito intensiva, muito imersiva – daí chamar-se Dive [mergulho] –, durante uma semana. Porque a utilização destas ferramentas de inteligência artificial não tem necessariamente dificuldades tecnológicas de acesso, não são difíceis de usar, mas exigem uma alteração na forma como as empresas trabalham, como as pessoas trabalham, como as pessoas colaboram umas com as outras. E acreditamos que o modelo que temos da 42, a forma como os nossos alunos aprendem e colaboram uns com os outros, aprendem umas com as outras, é extraordinariamente enriquecedora e que podemos transportar uma parte desta experiência para as empresas.

Isto estimula a criatividade e a inovação?

Claro. Basicamente, em vez de pormos as pessoas a assistir a aulas e fazer um exame no fim, o que estamos a fazer é lançar desafios e pô-las na situação de ter de ir à procura de como é que vou fazer isto. Tenho de experimentar, tenho de tentar, falhar, tentar outra vez, tenho de pedir ajuda ao meu colega do lado – vamos experimentar. E isto é muito libertador das pessoas, muda muito a nossa perspetiva das coisas. Em vez da atitude que existe tradicionalmente na educação e nas empresas, que eu tenho medo de falhar, se eu falhar vou levar uma descasca, aqui não, faz parte do processo, temos de experimentar, temos de ter nós a responsabilidade e a iniciativa para resolver este problema e poder pedir ajuda e poder tentar e falhar as vezes que forem necessárias até conseguir resolver. E é isto que acontece na nossa escola e pelo menos o feedback que temos tido das empresas que participam neste programa é muito bom, porque é preciso mudar a forma de trabalhar das pessoas para utilizar estas ferramentas.

É preciso que a cultura das empresas também se adapte a esta forma de aprendizagem, ou não?

Claro.

E isso é fácil de acontecer?

Nada é fácil, tudo é difícil. Mas tudo é exequível se quisermos, se tentarmos, se tivermos verdadeiramente vontade de o fazer. Já fizemos estes programas com empresas muito tradicionais, muito hierárquicas e claro, um dos choques que acontece é que misturamos pessoas de diferentes idades, de diferentes áreas, de diferentes lugares da hierarquia e que têm de trabalhar umas com as outras e não há uma que manda nas outras, isso é muito perturbante e chocante para as pessoas. Mas no fim do dia, acho que as empresas estão a andar um pouco nessa direção. Pequenos grupos têm responsabilidades às vezes muito grandes e tudo isto tem uma geometria variável, porque às vezes os desafios mudam, as equipas mudam e as pessoas podem passar de uma coisa para a outra e há diferentes áreas.

O último relatório do Futuro das Profissões, do Fórum Económico Mundial, indica que o upskilling e o reskilling são fundamentais para o Futuro das Profissões e para até 2030 se conseguir garantir que de facto se consegue responder àquilo que também é a evolução das exigências do mercado, com aquilo que é a evolução tecnológica. Modelos de formação mais rápidos, mais adaptados ao mercado, mais desburocratizados, são a solução?

Claro. Acho que ninguém conhece os números, nem sabe o que é preciso, mas as estimativas que tenho visto dariam, desde a União Europeia ter de fazer o reskilling de 20 milhões de trabalhadores, aquilo que é óbvio é que toda a gente tem de aprender a mudar, a usar a inteligência artificial, a ter que mudar a forma como trabalha para tirar o máximo partido disso. Nós não temos instituições de educação preparadas para retreinar toda a gente, nem sequer 10% das pessoas. Um modelo em que as pessoas têm que, periodicamente, voltar a aprender coisas, não existe.

Mas não é fatalista nesse aspeto?

Não, porque acho que existem formas inteligentes de fazer isto, formas que escalam mais. E, mais uma vez, a 42 é um bom exemplo disso, ou destes programas que nós estamos a fazer. Isto pode ser feito em grande escala, mas não vão ser as instituições tradicionais a ser capazes de fazê-lo.

Tem de ser o Estado a incentivar?

Tenho sempre dificuldade em dizer que qualquer coisa tem de ser o Estado a incentivar, porque o Estado é lento, é burocrático, pensa sempre nas soluções do século passado, tem dificuldade. Temos o IEFP, uma máquina gigante, com milhares de trabalhadores e milhares de formações; acreditamos que vão ser eles que vão fazer o reskilling da população? Não acredito.

Como é que se faz?

É preciso olhar para estes exemplos novos, para estas formas novas de aprender em grande escala, e mais económicas.

O Estado aí pode ter um papel?

Claro, claro. De teste, de validação, até de incentivar a escala. Mas, no fim do dia, a grande mudança que tem de acontecer, são as pessoas que têm de ter responsabilidade pelo seu capital humano. Tem de haver agência das pessoas. Sou eu que giro o meu capital humano, e tenho de saber o que é que tenho de aprender, e tenho de aprender a aprender, e tenho de aprender a atualizar-me, e a desenvolver estratégias para maximizar o meu capital humano. Isto é eminentemente das pessoas.

Consegue garantir o financiamento para a continuidade de projetos como o TUMO e a 42, para que tenham o impacto económico que está estimado em 10 anos?

Acho que não podemos garantir nada, obviamente. Tentamos assegurar o financiamento para os próximos poucos anos. Mas vivemos, em primeira análise, da boa vontade das pessoas, das empresas e das fundações que acreditam em nós, que acreditam que aquilo que fazemos tem impacto. É uma coisa que eu acho muito importante: temos encontrado uma quantidade de pessoas, de empresas, de fundações, com uma generosidade incrível, muito preocupadas com o futuro da educação no país e dispostas a financiá-lo e a contribuir de muitas maneiras. Sobretudo um país como o nosso, que tende a ser muito cínico em relação a estas coisas todas, acho que é extraordinário que isto aconteça. Para dar uma ideia, quando fizemos a Nova SBE [em Carcavelos], conseguimos donativos de 54 milhões de euros que financiaram a construção do campus. Nos últimos cinco anos, desde que saímos de lá e lançámos a 42 e agora o TUMO, já conseguimos donativos de 25 milhões de euros. Isto são verbas importantes, mostram que temos uma sociedade que, apesar de já ser sobrecarregadíssima de impostos, que depois são muitíssimo mal utilizados tantas vezes, está disposta a fazer um investimento adicional na qualidade da educação. Isto é a sociedade civil, isto é o nosso país. Devemos ter orgulho nestas empresas, nestas pessoas e nestas fundações.

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