Perdeu-se a vergonha. E a cabeça

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Quem chegou a crer que a António Costa cabia fazer rir, no circo montado por Pedro Nuno Santos, estava bem enganado. O primeiro-ministro voltou a provar que e porque é ele o dono da companhia e domador de feras, como manda a tradição circense.

1. Comecemos pela parte política deste - de mais este - triste espetáculo de uma equipa governativa que levou o SNS ao colapso, pôs a educação a escorregar pelo cano, não parece incomodada com uma justiça que se presta a que um antigo primeiro-ministro se mantenha 10 anos nos corredores dos tribunais à espera de sentença, rumo à prescrição final. E considera que um cheque único de 60 euros é uma boa ajuda para as famílias que vivem com menos de 376 euros/mês comprarem comida que a inflação encareceu em 30% sobreviverem todo o verão.

No mais recente episódio desta novela deprimente em que se tornaram os centros do executivo em Portugal, um ministro aproveita a ausência do chefe do governo para desautorizá-lo, passa um dia inteiro a fazer propaganda à sua decisão, partilha com toda a comunicação social cada detalhe que não levou aos órgãos e às vias oficiais. E ao fim de 12 horas acorda com um comunicado do primeiro-ministro a ordenar-lhe que desfaça a burrada que fez, porque quem manda é António, e não Pedro. Em parcas linhas, o primeiro-ministro empunha o chicote de domador e humilha publicamente o seu ministro, põe-no no lugar, obriga-o a recuar, contradiz não apenas a decisão de Pedro Nuno Santos como os seus argumentos para não abrir os braços à oposição, não falar aos parceiros de governo, não comunicar ao chefe do Estado.

Em privado, dá as estocadas finais que lhe permitem mostrá-lo, a fera amansada. É o próprio Pedro Nuno Santos, que vem dizer que errou, que foi "uma falha infeliz" pela qual é "totalmente responsável", um "erro de comunicação lamentável" pelo qual se "penaliza profundamente". Humilhado agora de motu proprio, usa a primeira pessoa do plural para exibir o que Costa lhe permite mostrar: que continuarão a trabalhar em conjunto na solução que afinal não está tomada, ainda que haja um dossier completo e detalhado sobre ela. Por agora, não há demissões, ainda que de fora se questione que confiança pode persistir nesta relação a dois.

Vem então o líder da companhia passar a mão pelo pêlo do camarada Santos e reforçar, para quem não aprendeu com Constança Urbano de Sousa, Azeredo Lopes, Eduardo Cabrita, Marta Temido que o mais grave dos comportamentos não influencia a permanência no governo. Só Costa decide quem entra e quem (e quando) sai. Que grande artista se volta a mostrar!

2. Passemos agora ao substancial. A urgência de avançar com uma alternativa à esgotada Portela é uma realidade. O custo de uma não decisão tem-nos saído muito caro - só em estudos e consultores foram já mais de 70 milhões de euros, quase 20% acima do valor orçamentado para os tais 60 euros distribuídos pelas famílias pobres. Mas a urgência da decisão não significa que qualquer solução seja boa. Muito menos que um misto de todas seja a acertada.

Não há a menor racionalidade no plano que Pedro Nuno apresentou. Zero lógica! Não tem sentido do ponto de vista estrutural, nem económico, nem técnico, nem ambiental, nem político.

Gastar dinheiro com um aeroporto que é para fechar, levar dois anos a levantar um segundo para durar oito anos e construir de raiz um terceiro, rebentando com dois ecossistemas e financiando projetos novos para deitar ao lixo ao fim de uma década. É isto que querem vender-nos como uma boa ideia. Querem (presente do indicativo), porque a solução em nenhum momento foi descartada por Costa - e certamente Pedro Nuno não andou a cozinhá-la às escondidas no seu gabinete.

Só há uma razão para se ver aqui virtudes: tentar deixar contentes todos os que contam que o investimento pingue no seu quintal e ainda possam lucrar com terrenos comprados quando se apontava ora para um ora para outro local. A urgência do turismo resolve-se com o plano original: avançar definitivamente com um local e recorrer às infraestruturas que já existem para garantir que a coisa se aguenta até estar de pé. Uma solução que mereça o acordo de pelo menos os dois maiores partidos no Parlamento, dada a longevidade que se pretende que tenha.

3, O resto, é história. E independentemente da narrativa que Costa tenta passar, esta resume-se da forma seguinte. Em 2014, o governo (PSD+CDS) aprovou uma solução e preparou tudo para pôr a andar o novo aeroporto de Lisboa, no Montijo, financiado pela gestora aeroportuária Vinci por contrato de concessão, e que pressupunha um papel para a infraestrutura de Beja. Nada se passou até 2019, mas o Montijo continuava de pé, motivando até a invasão de um jantar do PS, protesto de um ativista climático. Em 2021, é a ANAC a chumbá-lo, sem "haver lugar à apreciação técnica do mérito do projeto", porque avançar era contra a lei: o veto dos autarcas da Moita e do Seixal (ambos PCP) impedia-o. E Costa viria anunciar que apagaria essa lei para fazer avançar o tema, com Rui Rio a apoiar a mudança.

Em maio de 2022, o OE da maioria absoluta traz uma surpresa: afinal não é urgente um novo aeroporto, volta tudo atrás, há muito tempo para estudar e decidir. Um mês depois, parece que é muito premente a decisão e que em 2023 até vamos ter de recusar voos, garante o mesmo governo que deixara o aeroporto fora do OE. O resto, querem fazer-nos acreditar, não passou de uma explosão precoce.

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