Plataformas. "Havia dúvidas sobre se todos os trabalhadores estavam cobertos", diz ministra

Proposta do governo mudou e vai dificultar reconhecimento de relações de trabalho com plataformas como Uber, Glovo e outras, segundo coordenadora do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho.
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A ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, justificou nesta sexta-feira o recuo do governo face à proposta que tinha apresentado em outubro do ano passado para regulamentação do trabalho em plataformas digitais como Uber, Glovo, Bolt e outras, argumentando que a redação inicial deixava dúvidas sobre se alguns trabalhadores ficariam excluídos.

"Havia dúvidas sobre se todos os trabalhadores estavam cobertos", respondeu a ministra no parlamento, na apresentação da proposta de alterações às leis laborais designada pelo governo como Agenda do Trabalho Digno. Mendes Godinho aludiu, assim, a trabalhadores ao serviço de intermediários, como sucede atualmente já com motoristas TVDE.

"Podemos melhorar qualquer redação que não tenha ficado clara", assumiu, no entanto, apontando para mudanças pontuais.

Estão em causa as alterações na proposta do governo que introduzem, numa segunda versão apresentada ao parlamento, a possibilidade de a relação de trabalho de estafetas e outros trabalhadores ser estabelecida não diretamente com as plataformas, mas com "operador de plataforma digital" ou "outra pessoa singular ou coletiva beneficiária que nela opere".

Da proposta de lei caem também vários indícios que servirão de evidência para comprovar as relações de trabalho. Designadamente, aqueles que estão relacionados com o controlo da atividade em tempo real através de geolocalização ou com o funcionamento do algoritmo, por exemplo, na distribuição ou bloqueio de trabalho.

As alterações irão dificultar o reconhecimento de relações de trabalho entre estafetas e outros trabalhadores diretamente com as plataformas, considerou já Teresa Coelho Moreira, uma das coordenadoras do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que serviu de base à preparação das alterações legislativas.

Foi o que lembrou o Bloco de Esquerda, afirmando que a formulação adotada agora pelo governo coincide com aquela que as empresas de plataformas tinham proposto na discussão do tema, e alertando que o texto levado ao parlamento "é incompatível" com a proposta de diretiva europeia sobre o mesmo tema, que prevê o reconhecimento da relação de trabalho apenas diretamente com a plataforma e não com qualquer figura intermediária.

O partido acusa o governo de várias cedências na proposta que começa hoje a ser discutida no parlamento, referindo ainda outras mudanças face à proposta inicial. O exemplo, a desistência de estender até 2024 a atual moratória que impede a caducidade de convenções coletivas ou de as empresas que prestam serviços ao Estado terem contratos permanentes com os trabalhadores. "A que lóbis é que o governo cedeu?", questionou José Soeiro, deputado do Bloco de Esquerda.

A isto, a ministra do Trabalho defendeu que o governo procurou "o máximo denominador comum" dos resultados da consulta pública realizada no outono passado sobre o projeto de diploma inicial.

O secretário de Estado do Trabalho, Miguel Fontes, foi mais longe, já no encerramento do debate, defendendo que para o governo o importante é que haja um contrato de trabalho reconhecido, independentemente de este ser estabelecido com as plataformas ou intermediários.

"Para nós é indiferente saber se são as plataformas ou os intermediários. Aquilo que queremos proteger são os direitos daqueles que nelas operam enquanto trabalhadores", afirmou.

"Chega de repetir, por favor, a questão das plataformas digitais, porque esta proposta não vem fazer nenhum retrocesso. Esta proposta faz exatamente o contrário: um combate firme a todas as formas ilegítimas e desprotegidas que hoje existem ao abrigo das plataformas, independentemente de quem as preconiza e de quem as promove", defendeu ainda.

Também da parte de outro ex-parceiro da geringonça, o PCP, foi notado recuo quanto ao trabalho nas plataformas digitais. Além disso, a proposta em apreciação na generalidade "mantém todos os cortes nas remunerações e nos direitos" dos trabalhadores operados durante o chamado período da troika, segundo a deputada Diana Ferreira. A parlamentar acusou o governo de ter uma agenda de trabalho digno "só no nome".

O governo defendeu por seu turno os méritos da proposta, de uma "agenda forte" que, disse Ana Mendes Godinho, "assenta em responder ao que os jovens procuram e não em remendar o passado".

PCP, Bloco de Esquerda, PAN e Livre apresentam 17 projetos de alterações que acompanham a discussão da proposta de governo, visando, entre outras matérias, reduções de horários, subida de pagamentos por trabalho suplementar, noturno e por turnos, ou ainda alargamento das licenças de parentalidade. Projetos que defenderam esta manhã.

PSD, Chega e Iniciativa Liberal, pelo contrário, não levaram qualquer projeto à discussão, mas não deixaram de apresentar algumas críticas.

Da parte do PSD, a deputada Clara Marques Mendes garantiu "oposição construtiva", mas assinalou "vários vícios" na proposta do governo. Desde logo, a falta de acordo ao texto dos parceiros da Comissão Permanente de Concertação Social e ausência de acompanhamento da discussão com medidas de uma política de rendimentos que aborde "salários e pensões". A deputada defendeu ainda que, apesar de o governo insistir na ideia de combate à precariedade, tem havido aumento de precariedade nas administrações públicas.

O Chega também questionou a ministra do Trabalho sobre a ausência de acordo em Concertação Social e assinalou a falta de implementação da chamada taxa de rotatividade para empresas que mais contratem a prazo, legislada em 2019. "Não faça remendos quando ainda não aplicou a lei", disse o deputado André Ventura.

A Iniciativa Liberal deixou, por seu turno, também críticas aos projetos de redução de horários para 35 horas semanais apresentados por Livre e Bloco de Esquerda, com o deputado Carlos Guimarães Pinto a dizer que "um dia será aprovada a lei das 35 horas", mas apenas "se permitirmos que a economia se desenvolva".

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