Pode a velocidade salvar-nos da realidade?

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No final deste mês, as 10 equipas que disputam o campeonato de Fórmula 1 vão apresentar os seus carros – como lembramos na última página deste suplemento. Estamos a falar de uma indústria que tem estado sob holofotes graças à aposta em mercados como o dos EUA e do Médio Oriente, à existência da séria 'Drive to Survive', produzida pela Netflix e, claro, pelas redes sociais. O desporto que foi eternizado por Ayrton Senna é, hoje, um circo ainda maior do que há umas décadas. Desde os salários milionários dos pilotos aos milhões de euros investidos na tentativa de produzir o carro mais rápido, tudo é muito. No ano passado, as estimativas apontavam para que houvesse 750 milhões de fãs a assistir a corridas de F1, um recorde histórico. As mulheres já representam cerca de 40% deste total. As marcas de luxo – a enfrentar avultadas perdas de receita, sobretudo por efeito do aumento significativo dos preços que praticam – querem cada vez mais associar-se à indústria que criou vultos como Lewis Hamilton e, mais recentemente, Max Verstappen, desportistas de uma geração onde as corridas são também desfiles de relógios, roupa de designers reconhecidos e, claro, algumas modelos na qualidade de namoradas das estrelas do momento.

Não deixa de ser curioso que enquanto o mundo atravessa períodos de profunda incerteza – esta semana, num encontro com jornalistas em Lisboa, os analistas da XTB Portugal davam conta de como essa dúvida vai continuar a pesar no sentimento dos investidores e a provocar volatilidade nos mercados acionistas – o apelo por tudo o que é velocidade, dinheiro e beleza se torne mais evidente. É como se permitisse uma espécie de escape para aquilo que têm sido as bizarras notícias dos últimos dias: deputados da Assembleia da República acusados de prostituição de menores; o presidente dos EUA a querer transformar a Faixa de Gaza na 'Riviera do Médio Oriente' – expulsando, naturalmente, quem lá vive; Cristina Ferreira a repetir que uma candidatura ao Palácio de Belém não está excluída; os nomes de agentes da CIA em risco de serem divulgados por determinação da Casa Branca...

Numa altura em que Portugal atravessa diversas crises – na saúde, na habitação, na imigração – e em que o mundo tenta perceber se vai entrar apenas em guerras comerciais ou se a essa se juntarão outras, com efeitos ainda mais perniciosos, não é de estranhar que queiramos olhar para o lado bom da vida. Talvez seja isso que torna os desportos de alta competição (e custos), como a F1, tão glamorosos: a ideia de que, se andarmos muito rápido e cheios de acessórios brilhantes, o mundo se possa transformar rapidamente num lugar muito melhor do que aquele em que temos de habitar agora.

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