O Mundial ainda não acabou e cinco das transmissões de jogos deste campeonato já estão na lista dos dez programas mais vistos do ano: três transmitidos pela RTP1 - todos da Seleção -, um pela SIC e um pela TVI. Mais um dado: os 13 programas mais vistos até agora, neste ano, são todos jogos de futebol..Numa época de decadência de audiências dos canais generalistas, que em média, todos juntos, ficaram nos 43%, o triunfo vai para o conjunto dos canais de cabo e streaming, que são vistos por 57% dos espectadores. Quando há uma grande competição internacional de futebol, tudo isto fica subvertido e os generalistas ganham momentaneamente mais audiência. E quando é a Seleção Nacional a jogar, os números alcançados são ainda maiores - neste Mundial, a Seleção ficou sempre acima dos 3,5 milhões de espectadores de audiência e a goleada contra a Suíça foi vista por perto de quatro milhões..O que acontece - aqui e em qualquer lugar - é que nem os campeões de audiência do entretenimento, como Isto É Gozar Com Quem Trabalha, Big Brother e as mais populares novelas, alcançam estes valores. As transmissões em direto de grandes eventos desportivos são para ser vistas em direto, os outros podem ver-se em diferido. Salvo para especialistas e adeptos estudiosos, não faz sentido ver um jogo depois de saber o resultado..Mas voltemos às audiências no momento: como escrevi no início, os três programas mais vistos são transmissões de futebol emitidas pela RTP1, serviço público de televisão. Mas também como já vimos, os canais privados estão igualmente interessados e transmitem jogos, quer do Mundial quer das grandes competições internacionais e até nacionais, como a Taça de Portugal. A questão que não me canso de colocar é esta: por que razão há de o serviço público gastar o que gasta nestas transmissões, em vez de fomentar de forma mais ampla outro tipo de programação que os privados não querem ou não podem fazer?.Há muitos anos, ainda havia o argumento de que cabia ao serviço público fazer chegar a todos a imagem de Portugal, personificada na Seleção. Mas o desenvolvimento dos canais privados veio mostrar que, em matéria de transmissão de provas desportivas em sinal aberto, acessível a todos, os privados desempenham tão bem o papel como o canal de serviço público. Não consigo entender a proteção legal que o acionista Estado dá à sua RTP, estabelecendo até o caderno de encargos de transmissões..Em muitos países, a transmissão de grandes provas desportivas cabe naturalmente aos privados, comerciais, e os canais de serviço público não tocam no assunto. Esta questão da importância da transmissão de jogos de futebol é aliás defendida com unhas e dentes dentro da RTP, havendo até quem diga que deve fazer parte da matriz de obrigações do serviço público. Para trás, sem verba ou com financiamento insuficiente, fica um imenso rol de programas que não se fazem nem no privado nem no público. Fará sentido, hoje em dia, na paisagem audiovisual existente, que a RTP invista o que investe em transmissões de futebol? Há certamente um papel para o serviço público em matéria de apoio ao desporto, em modalidades amadoras, no fomento do desporto juvenil e nalgumas outras áreas. Mas não faz sentido investir dinheiros públicos em competições que são uma montra publicitária ou até política, como acontece com este Mundial no Qatar. Aliás, em termos comerciais, já que a RTP vende publicidade, o efeito das transmissões desportivas profissionais é residual quando se considera a média de audiência obtida - já nem vou mais longe - na semana da transmissão. Por vezes, a publicidade angariada para ser exibida durante um jogo não cobre os custos de direitos de transmissão e de toda a operação técnica que é necessária..O mundo do desporto profissional é terreno pantanoso, no qual as acusações de corrupção se sucedem. O bom senso devia levar o serviço público a afastar-se dele. Uma gestão rigorosa dos dinheiros que sustentam a RTP desaconselha que seja usada para concorrência com os privados, em vez da produção de conteúdos de ficção, documentário ou outros que, naturalmente, não são prioridade para os privados. Esta é das perguntas mais incómodas que se pode fazer para o universo RTP e a sua tutela governamental: deve o operador de serviço público transmitir futebol profissional ou deve deixar essas emissões aos privados? .Manuel Falcão, SF Media