
Planos, estratégias e uma lei de bases. Desde o Acordo de Paris, em vigor há sete anos, diferentes diplomas e incentivos foram criados e ativados em Portugal para acelerar a ação climática e garantir a descarbonização da economia nacional até 2050. Com as eleições legislativas a cerca de um mês de distância, e sem se conhecer o programa de cada um dos partidos para a transição energética, o Dinheiro Vivo (DV) traça de ponto em ponto a atual situação.
Há trabalho feito no uso de energias renováveis e avultados investimentos anunciados, mas a dependência do carro indivudal, o “desordenamento do território”, a ausência de políticas preventivas para adaptar o país às alterações climáticas e uma Lei de Base do Clima para já pouco consequente, levam especialistas a alertar para “desafios muito grandes” ainda por solucionar. Mas vamos por partes.
Projetados 85 mil milhões em investimentos verdes
O Governo em gestão puxa dos galões para defender o caminho já percorrido, uma vez que Portugal foi o primeiro país do mundo a comprometer-se a atingir a neutralidade climática em 2050, meta que o país - confirmou o executivo no COP 28 - pode antecipar para 2045. O encerramento das centrais termoelétricas de Sines e do Pego, em 2021, nove anos antes do previso, é outro marco reconhecido. Portugal foi o quarto país europeu a fechar as centras a carvão.
Realçando que “antecipou em quatro anos as metas de produção de eletricidade - 80% de incorporação de renováveis já em 2026 e 85% em 2030” -, o Gabinete de Imprensa do Ministério do Ambiente e da Ação Climática começa por afirmar ao DV que, em 2023, o país “aumentou em mais de 50% a capacidade instalada de energia de fontes renováveis, face a 2015”.
Afiança, em jeito de exemplificação do efeito daquele aumento, que a produção renovável abasteceu “61% do consumo de energia elétrica, 31,2 TWh [terawatt-hora], o valor mais elevado de sempre”, permitindo “reduzir as emissões de gases poluentes na produção de eletricidade para o nível mais baixo de que há registo”. Outro exemplo é o período de seis dias (149 horas seguidas), entre 31 de outubro e 5 de novembro do ano passado, em que “o consumo nacional de eletricidade foi abastecido por produção renovável nacional, superando o anterior recorde de 131 horas, em 2019”.
Acresce que até novembro de 2023 foram instalados no país "mais do que 1 GW (gigawatt)" de potência solar fotovoltaica, o que compara "com 959 MW em 2022 e com 524 MW em 2021", e registou-se um "grande impulso na produção descentralizada", verificando-se "mais 666 MW [megawatt], o que compara com 387 MW na produção centralizada". O autoconsumo, que era inexistente em 2015, ascendeu 1,5 GW em 2023, o que "representa mais de 40% da capacidade solar instalada" no país, segundo a mesma fonte.
E para o futuro, o que esperar? “Portugal é o sétimo país mais atrativo do mundo para os investimentos na área das energias renováveis”, defende o Governo, lembrando que “estão projetados 85 mil milhões de euros de investimentos verdes, mais de 35% do PIB nacional - 60 mil milhões de euros em diferentes tecnologias associadas à produção de eletricidade renovável a atração de indústrias verdes (hidrogénio verde e lítio), que correspondem a 25 mil milhões de euros e 19 mil empregos diretos".
A projeção do executivo engloba a chamada estratégia de transição energética, que representa "75 mil milhões de euros de investimento em projetos de produção de energia verde (eletricidade e gases renováveis) – dos quais 41 mil milhões de euros até 2030".
Estes valores representam uma estimativa sustentada em manifestações de interesse do setor privado na concretização de projetos que cumprem os diferentes planos e metas para a transição energética de Portugal, sem esquecer o “efeito multiplicador” dos empreendimentos projetados, “tanto a montante - por via de novos projetos industriais de fornecimento dos equipamentos e serviços necessários à sua instalação - como a jusante - em resultado das novas indústrias verdes que se instalam no país”, segundo o Gabinete de Imprensa do Ministério do Ambiente e da Ação Climática.
O perfil energético de Portugal já está a mudar?
Vamos a números. Os últimos dados disponíveis na Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) são relativos ao ano de 2022. Diz a DGEG no seu balanço energético que o consumo de energia primária por Portugal cresceu naquele ano, em termos homólogos, 2,4%, para 21 315 ktep. O petróleo e o gás natural representam praticamente 65% do consumo. No mesmo ano, o consumo de energia final - aquela que é comercializada e recebida pelos consumidores - cresceu 2,3%, para 16 521 ktep, face a 2021. Mais de 70% teve origem no petróleo e na eletricidade.
Observando os gráficos da DGEG naquele documento conclui-se que o consumo de carvão reduziu-se consideravelmente, sobretudo a partir de 2019, e o uso de fontes renováveis na geração de eletrecidade tem subido consistentemente.
Noutro documento, as estatísticas rápidas da DGEG indicam que as fontes renováveis produziram quase 38 mil GW de eletrcidade até novembro de 2023. A Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN) aponta mesmo que os centros electroprodutores de Portugal Continental produziram em todo o ano passado um total de 44 128 GWh de eletricidade, sendo 70,7% provenientes de fontes renováveis, "um máximo histórico nacional de produção renovável", refere a APREN ao DV.
Não obstante, dados da Pordata até 2022 (os últimos disponibilizados) revelam que Portugal continua a importar grandes quantidades de petróelo e gás natural. Nesse ano foram comprados praticamente 12 milhões de toneladas de petróelo e derivados provenientes de Angola, Arábia Saudita, Argélia, Azerbaijão, Brasil, Espanha, Nigéria e Reino Unidos. E mais de 5,5 milhões de metros cúbicos de gás natural, proveniente dos EUA, Nigéria e Rússia.
Um estudo da consultora norte-americana Mackinsey estima que são precisos 275 triliões de dólares (mais de 255 biliões de euros) para acabar com as emissões poluentes até 2050. Só para a Europa as contas apontam para a necessidade de 25 biliões de dólares (23 mil milhões de euros).
Por cá, além dos investimentos privados na ordem dos 85 mil milhões de euros - que o Governo diz estarem projetados - há o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), dotado com mais de 22 mil milhões de euros. Dessa verba, há 4,4 mil milhões de euros para a transição climática, área que acautela as questões energéticas, onde - talvez - a componente mais relevante para se atingir a neutralidade carbónica seja a que se destina à descarbonização da indústria (dotação de 837 milhões). Ora, o Público noticiou no final de novembro último que "apenas 2,2% da indústria portuguesa pediu ajuda ao PRR para descarbonização".
"Até 2030, Portugal vai duplicar a capacidade instalada de produção de eletricidade a partir de fontes renováveis, acelerando a descarbonização e dando resposta às necessidades dos novos investimentos industriais previstos para o nosso país", contrapõe ao DV o Gabinete de Imprensa do Ministério do Ambiente e da Ação Climática.
Nos próximos seis anos, prossegue o Governo, a capacidade prevista de elotrolisadores vai duplicar, "permitindo assim descarbonizar a indústria nacional, atrair novas indústrias e exportar este gás renovável para a União Europeia". E, para dar resposta ao aumento "muito expressivo e virtuoso de procura por eletricidade verde" previsto, o executivo afiança ter reforçado "a aposta no solar fotovoltaico, incluindo a produção descentralizada (como as comunidades de energia renovável)". "Irão ser lançados, até 2030, leilões correspondentes a uma capacidade de 10 GW de produção eólica offshore", realça.
APREN pede celeridade e "mecanismos de estabilidade"
Contactado, Pedro Amaral Jorge, presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), afirma que “apesar dos bons números renováveis que encerraram o ano [de 20230], é necessário colocá-los em contexto com os desenvolvimentos legislativos”. Por exemplo, a revisão do Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC 2030), cuja versão final do plano luso só será entregue à Comissão Europeia em junho deste ano.
"A atualização do PNEC nacional advém também da atualização das metas a nível europeu, instituídas pelo pacote legislativo REPowerEU - a somar ao Objetivo 55, suportados pelo pacote ecológico europeu -, lançado para aumentar a independência energética da Europa face à Rússia e para reduzir a dependência europeia dos combustíveis fósseis, após a invasão deste país à Ucrânia", comenta.
O presidente da APREN mostra-se satisfeito com a revisão, tendo em conta que as metas serão "significativamente mais ambiciosas", prevendo-se que a potência de energia renovável instalada no país seja 43,2 GW até 2030. "O país acabou o ano passado com cerca de 19 GW de potência renovável, sendo necessário instalar mais do dobro até ao final da década", diz.
Pedro Amaral Jorge nota que o setor tem um “impacto socioeconómico comprovado” e, assumindo o cumprimento de investimentos e metas projetadas, o papel do setor seria "ainda mais favorável para o país, com as renováveis a serem responsáveis em 2030 por 5,9% do PIB, o que equivale a 17 mil milhões de euros".
Todavia, o último ano trouxe “desenvolvimentos” aos “maiores desafios” e aumentou “o nível de incerteza face ao desenvolvimento de novos projetos”.
Conclusão? “Os números favoráveis [na geração de energia a partir de fontes renováveis] resultam sobretudo de um ano hídrico favorável e da entrada de capacidade solar em operação, no entanto, estes valores ficam aquém para atingir, até 2030, o nível de descarbonização e competitividade da economia portuguesa necessárias”, esclarece. “É preciso fazer mais e de forma mais célere”, avisa ainda.
Diz o presidente da APREN que "é preciso garantir que as estratégias e regulamentação do setor são implementadas e operacionalizadas, criando visibilidade à concretização dos projetos e garantindo, assim, que se mantém a atratividade de capital oriundo do sector privado".
“É urgente a criação de mecanismos de estabilidade”, prossegue o presidente da APREN, indicando que o atual quadro de “inflação elevada e política monetária mais restritiva”, ao mesmo tempo que há um mercado de eletricidade “com previsões de preços com bastante mais volatilidade, cria uma incerteza adicional aos investimentos futuros, principalmente no setor renovável que que se caracteriza por ser de capital intensivo com custos variáveis negligenciáveis”.
Pedro Amaral Jorge refere, ainda, que existem "disposições essenciais" das diferentes revisões legislativas que visam o setor energético renovável que continuam por implementar. "Nomeadamente no licenciamento integral dos projetos, no que respeita à digitalização, agilização de procedimentos e redução dos pontos de contato. Igualmente a necessidade do planeamento de rede e gestão da mesma em consonância com as necessidades de integração de maior capacidade renovável, não têm visto os desenvolvimentos necessários e por último, a readaptação das entidades envolvidas, face às necessidades de hoje e futuras, também urge".
Para o responsável, um "quadro legítimo estável" e investimentos que permitam a criação de valor, permitirão ao setor "gerar mais de 200 mil empregos direto e indiretos técnicos e qualificados" até 2030.
Mais esforços são necessários
A importância dos investimentos nas fontes renováveis para produção de energia é inegável, mas haverá outras ações necessárias para cumprir a descarbonização da economia nacional.
Questionada, a Zero dá o exemplo do setor dos transportes, que “segue uma trajetória alarmante que urge inverter”, sendo necessário reduzir as emissões rodoviárias “em pelo menos 5% todos os anos até 2030”.
“A forma mais eficaz de o fazer será centrarmo-nos na eletrificação dos veículos com elevadas taxas de utilização”, prossegue a associação ambiental, referindo que falta fazer cumprir a Lei de Bases do Clima, bem como as estratégias Industrial e de Armazenamento de Energia.
Declarando ser "essencial" que toda a eletricidade seja proveniente de fontes de energia renováveis até 2035, a associação ambientalista assinala que o sistema eletroprodutor deve atingir uma taxa de penetração das renováveis próxima dos 90%, "nos próximos quatro anos", de forma a ser possível "escalar a produção de hidrogénio verde, que será fundamental para descarbonizar os sctores que não podem ser eletrificados". Contudo, a Zero defende que o país "não deve dar qualquer prioridade à construção de novos gasodutos para exportar Hidrogénio".
"Nos casos em que seja necessário Hidrogénio produzido com eletricidade de origem renovável para substituir o gás, essa produção deverá ser feita preferencialmente junto ao local de consumo, pelo que a atual rede de transporte de gás fóssil não deve servir para transportar hidrogénio", explica.
Alertando para "um extenso trabalho" que ainda está por fazer no país - "como se pensa a transição energética, sobretudo na ótica da suficiência energética - a Zero considera fundamental o cumprimento da Estratégia Industrial Verde, que "deverá estruturar o processo de transição económica e social", e da Estratégia Nacional para o Armazenamento de Energia. E apela a que não se dissocie a crise climática da crise da biodiversidade.
Filipe Duarte Santos, presdiente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), por sua vez, afirma que Portugal tem “um percurso muito meritório nas renováveis”, mas também considera que “há muito por fazer” na adaptação do país às alterações climáticas, especialmente no setor dos recursos hídricos.
“A situação de escassez de água no Sul do país, e especialmente no Algarve, é preocupante e não existem medidas planeadas com a devida antecedência”, afirma.
"Apenas se impuseram medidas restritivas do consumo de água nos diversos setores. Não houve na última década uma visão de planeamento e ação para fazer face aos riscos de escassez de água provocados pelas alterações climáticas", critica.
Outra questão a resolver é a Lei do Clima. “O Conselho de Ação Climática deveria ter iniciado as suas funções em 1 de janeiro de 2024, mas com a queda do Governo a designação do seu Presidente pela Assembleia da República foi adiada e só será realizada após as eleições”.
"É crítico que a transição energética seja justa do ponto de vista social e económico e que não ponha em causa a proteção do ambiente. Trata-se de um desafio complexo e que se tornou mais difícil de concretizar com a diminuição do poder de compra, devido à inflação e à estagnação económica que se observa em alguns países, em particular na Alemanha. Nesta conjuntura a captação de investimentos poderá tornar-se mais difícil", nota FIlipe Duarte Santos.
Já Luísa Schmidt, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, defende a aposta em “políticas preventivas” para mitigar riscos e evitar despesas "inúteis e excessivas", defendendo que “a situação mais preocupante”, a propósito dos investimentos que se fazem na transição energética, “prende-se com o desordenamento do território e com os abusos que constantemente se cometem sobre as paisagens, agravados agora pelo designado Simplex do urbanismo e do território”.
“A pretexto de simplificar procedimentos administrativos para o licenciamento de obras, acaba[mos] por escancarar os nossos patrimónios, natural, cultural e paisagístico aos oportunismos, sem que o interesse público seja convenientemente acautelado”, argumenta.
A investigadora, que fez parte da equipa que introduziu a sociologia do Ambiente em Portugal, afirma também que, apesar do encerramento das centrais de carvão e das expansão das energias renováveis, o país continua "a depender demasiado do transporte rodoviário individual". "Nas últimas décadas pouco investimos em transportes limpos e eficientes (comboio e metro), e temos um parque edificado com péssimo desempenho energético, o que também agrava e atrasa o processo de descarbonização”, realça.
Lançar programas regenerativos de áreas protegidas e parques naturais; promover a requalificação ambiental urbana, incluindo a criação de mais "zonas de emissões reduzidas" e mais zonas verdes e de "amenização climática"; criar um estatuto de emergência climática nas faixas costeiras impedindo a sua ocupação urbanística ou avançar com o cadastro florestal e com o ordenamento florestal, são algumas das recomendações de Scmidt para um próximo Governo.