
O País e as contas públicas portuguesas vão violar regras mestras do Pacto de Estabilidade (a nova regra de travão da despesa pública, a margem "disponível" para a despesa) já na sua estreia, em 2025, na sequência das várias medidas que têm vindo a ser aprovadas pelo governo PSD-CDS e pela oposição nas últimos meses (medidas que aumentam despesa e descem receita), e cujos os efeitos se propagam no tempo, alerta o Banco de Portugal (BdP), num estudo publicado, nesta sexta-feira.
E tudo isto ainda sem contar com o efeito da revisão das carreiras para várias classes profissionais da função pública, que pode abranger mais de 220 mil pessoas.
De acordo com o referido estudo, publicado no novo boletim económico do banco central governado por Mário Centeno, Portugal vai violar de forma flagrante a nova regra da despesa primária líquida.
A margem da despesa aceitável, que é consistente com a imperiosa redução da dívida, à luz do novo Pacto, um máximo admissível ou disponível, é de 5385 milhões de euros, calcula o BdP com base numa estimativa do Produto Interno Bruto (PIB) potencial que espelha as imposições do novo quadro legal europeu, em vigor desde abril, mas que será aplicado apenas no próximo ano.
Mas, os mesmos cálculos do BdP também mostram que "o excesso do referencial da despesa face à margem disponível será superior a 2070 milhões de euros (superior a 0,7% do PIB)". Problema: Portugal, por ter uma dívida ainda muito acima dos 60% do PIB, só pode registar um excesso, no máximo, de 0,3% do PIB, segundo o novo Pacto.
Ou seja, o BdP mostra que se nada for feito para corrigir esta situação -- "novas medidas que permitam reduções na despesa e/ou aumentos da receita" -- então o País estreia-se no novo Pacto a violar o valor do indicador principal referente à despesa em mais do dobro.
Na apresentação do boletim económico, ontem no Museu do Dinheiro, em Lisboa, Mário Centeno falou deste novo estudo ou cenário para as finanças públicas e a aplicação das regras europeias, referindo que o BdP está a tentar ser "pedagógico" e mostrar os riscos reais que se colocam mediante as várias medidas que estão a ser tomadas.
"Apesar do excedente orçamental registado em 2023 [1,2% do PIB, o maior da História democrática], não deverá haver margem, segundo as novas regras, para aumentos de despesa ou reduções de impostos que não sejam compensados por outras medidas, especialmente se cenários macroeconómicos adversos se concretizarem", avisa o Banco.
"O rácio da dívida pública ainda é muito elevado e os efeitos do envelhecimento da população na despesa pública, já visíveis, irão acentuar-se nas próximas décadas."
Mas o problema da violação da principal regra do novo Pacto é maior do que parece. Pode conduzir a uma degradação da credibilidade do País, a comentários mais negativos e hostis da Comissão Europeia e de altos responsáveis de instituições como FMI, BCE ou OCDE, e, não menos importantes, a opiniões mais negativas das agências de ratings, que podem, num ápice, baixar a nota da República, agravando imediatamente as taxas de juro cobradas ao país, pressionando ainda mais despesa, reduzindo o saldo orçamental.
Medidas problemáticas
Ontem (sexta-feira), mesmo querendo ser apenas ilustrativo, Centeno mostrou-se preocupado com o rumo que o governo PSD-CDS e a oposição estão a definir nas Finanças do País.
O BdP diz que "a aprovação e anúncio de novas medidas com impacto orçamental nas semanas anteriores à publicação deste boletim", portanto, tudo medidas muito recentes, "condiciona a avaliação da situação das finanças públicas em Portugal nos próximos anos".
"A magnitude destas medidas e a sua natureza — diminuição de receita e/ou aumento da despesa — implicam uma redução do saldo orçamental" e "com a informação disponível, é expectável o retorno a uma situação de défice, colocando em risco a trajetória desejável para a despesa pública no âmbito nas novas regras orçamentais europeias", avisa o Banco.
Desde que começou a nova legislatura, "ocorreu o anúncio e aprovação de várias medidas de política com impacto orçamental relevante e permanente". Algumas, o Banco já consegue quantificar, outras não.
Entre as medidas que perturbam o cumprimento das metas europeias estão "a redução do IRS, o pacote de apoio aos jovens, o alargamento da redução do IVA na eletricidade, o apoio à habitação e reforço da saúde, bem como as revisões salariais de diversas carreiras na função pública", elenca a autoridade monetária nacional.
A despesa que conta mais para Bruxelas
No novo quadro para a disciplina orçamental na Europa (mais apertado no caso da Zona Euro), que entrou em vigor no final de abril de 2024, “a trajetória de ajustamento orçamental, a ser incluída por cada Estado-Membro nos planos de médio prazo, estará ancorada exclusivamente no referencial para a despesa”, explica o Banco.
Ou seja, para cada País, “é definida uma trajetória para o referencial para a despesa no respetivo plano orçamental de médio prazo, cuja variação é designada por margem orçamental” e considerou-se que a tal margem orçamental é calculada “a partir do crescimento do PIB potencial nominal”, que no caso português é de 5% em 2025.
E de que tipo de despesa se está a falar? É a “despesa pública primária líquida de medidas discricionárias do lado da receita, de programas de despesa financiados por fundos europeus, da componente cíclica dos subsídios de desemprego e de medidas temporárias”.
Portanto, uma despesa mais estrutural, a qual se abate medidas extra de receita, fundos europeus, uma parte mais volátil da despesa com subsídios de desemprego e os juros da dívida, ou seja, uma forma de não imputar ao governo todas as culpas pelo agravamento nos gastos que escapam mais ao seu controlo direto, argumenta o Banco.
A violação do novo limite da despesa
“Considerando as estimativas do Banco de Portugal para a execução do Orçamento do Estado para 2024, a margem orçamental em 2025 deverá situar-se em 5385 milhões de euros”, ou seja, é o máximo até onde Portugal pode gastar a mais e ir no novo indicador no ano que vem, sem por em xeque a redução imperativa da dívida pública.
A partir desta margem é depois possível “avaliar os aumentos previstos do referencial para a despesa”, até para os compensar à posteriori com novas medidas que remedeiem a situação. E é aqui que começam os problemas.
Segundo o BdP, usando os efeitos do Orçamento do Estado e de vária medidas novas aprovadas pelo PSD-CDS e pela oposição pós-OE, do lado da despesa, “verifica-se um aumento significativo das pensões e outras prestações sociais em dinheiro (1900 milhões de euros), bem como do aumento regular das despesas com pessoal (1050 milhões de euros) e do consumo intermédio e das prestações sociais em espécie (1100 milhões de euros)”.
Além disso, o Banco detetou já um aumento de gastos “com as variações do investimento com financiamento nacional e da outra despesa de capital, totalizando 1120 milhões de euros”. “Estas últimas despesas estão afetadas pelo forte aumento dos empréstimos do Plano de Recuperação e Resiliência”.
A estas, “acrescem 465 milhões de euros de medidas já aprovadas fora do exercício orçamental e para as quais existe quantificação (CSI - Complemento Solidário para Idosos, apoio aos jovens e revisão da carreira dos professores)”.
O conjunto destas despesas dá o tal referencial oficial para a despesa de 5635 milhões de euros, ou seja, o máximo de excesso admissível/disponível face à margem orçamental natural (potencial) do País.
Além disso, tem de se calcular “as medidas discricionárias do lado da receita” para depois abater àquela despesa. Se foram reduções de impostos (como é o caso do IRS), significa que agrava-se ainda mais a despesa líquida.
É o que sucede. As medidas da receita “incluem reduções de impostos no valor de 2330 milhões de euros, mas também 520 milhões de euros de aumentos de impostos, justificados pela reversão de medidas temporárias de alívio fiscal”. Assim, o conjunto de medidas relevantes do lado da receita aos olhos do novo Pacto “implicam uma redução de 1820 milhões de euros”.
“Deste modo, a variação do referencial para a despesa ascende a 7455 milhões de euros”. Centeno deixou o aviso: “sem medidas de compensação, não existe margem orçamental”. Só existe o tal excesso que é proibido pelas regras europeia.
Austeridade à espreita?
O Banco reforça a ideia: sem novas medidas que cortem despesa e/ou subam receita, ”o excesso do referencial da despesa face à margem disponível será superior a 2070 milhões de euros (superior a 0,7% do PIB)”.
É muito, é mais do dobro do limite que emana das diretrizes do novo Pacto. O excesso aumentado pelas medidas novas “excede o limite máximo de 0,3 pontos percentuais que está inscrito no atual procedimento por défice excessivo para economias com um rácio da dívida superior a 60%”, que é o caso de Portugal (tem uma dívida superior a 90%).
Moral da história: “A eventual correção deste desvio exigiria a adoção de medidas restritivas, com o risco de serem assumidas numa fase descendente do ciclo económico e, por isso, pró-cíclicas”, diz o Banco de Portugal.
Ou seja, seriam sentidas como medidas de austeridade. Novos cortes na despesa e/ou aumentos de impostos no pior momento do ciclo, como aconteceu no tempo da troika.
Grosso modo, neste cenário do banco central, estaríamos a falar numa necessidade de medidas adicionais de consolidação orçamental superior a 2 mil milhões de euros, pelas contas da autoridade monetária.
O banco central diz que ainda falta contar com outros pesos pesados de despesa que dilatariam ainda mais o valor de novas medidas necessária para compensar a violação da referida margem de segurança nos gastos públicos.
“Ficam fora deste exercício as diversas medidas com impacto orçamental significativo ainda em fase de negociação que abrangem mais de 220 mil trabalhadores da administração pública, os planos de emergência nas áreas da saúde e habitação, entre outras medidas setoriais”, avisa o BdP.