
Suspeitas sobre o processo de privatização da TAP em 2015, irregularidades na atribuição de prémios e remunerações aos gestores da transportadora portuguesa, e contratos de consultoria sem a devida justificação conduziram a Inspeção-Geral das Finanças (IGF) a sugerir ao Governo o envio da auditoria realizada às contas da companhia aérea, entre 2005 e 2023, ao Ministério Público. O relatório da IGF, a que o Dinheiro Vivo teve acesso, aponta para graves irregularidades e atos lesivos do Estado, que podem configurar crime.
O nebuloso processo de privatização da TAP ficou agora mais claro com a auditoria da IGF, pedida no ano passado ao Governo pela Comissão Parlamentar de Inquérito à Gestão da TAP. Segundo o documento, a Atlantic Gateway, detida por David Neeleman e Humberto Pedrosa, comprou 61% da TAP com fundos provenientes da Airbus, um total de 226,75 milhões de dólares americanos [cerca de 205 milhões de euros ao câmbio atual], em troca da aquisição de 53 aviões. A transportadora portuguesa ficou obrigada a pagar esse valor, caso desistisse da aquisição das aeronaves.
“No âmbito da aquisição de 61% do capital da TAP SGPS, ficou acordado que, para além do preço de dez milhões de euros pago à Parpública, a Atlantic Gateway procederia à capitalização da TAP SGPS através de prestações suplementares de capital no montante de 226,75 milhões de dólares americanos e de 15 milhões de euros”, lê-se no relatório. A parte mais relevante daquelas prestações suplementares (226,75 milhões) “foi efetuada pela Atlantic Gateway, através da sócia DGN (detida por David Neeleman), com fundos obtidos da Airbus”. Esse pagamento foi realizado “com base num acordo denominado Framework Agreement”, celebrado entre a Atlantic Gateway, DGN e a Airbus, em junho de 2015, e com conhecimento da Parpública em setembro desse ano.
A IGF revela que, em novembro de 2015, dois contratos celebrados entre a Airbus e a DGN foram transferidos para a TAP, que passou a ser “o verdadeiro comprador das 53 aeronaves adquiridas inicialmente pela DGN”. A auditoria considera que a documentação da aquisição dos 61% da TAP e respetiva capitalização, bem como a referente à compra dos 53 aviões, “evidencia uma coincidência dos valores relativos à capitalização e à penalização assumida pela TAP SA em caso de incumprimento dos acordos de aquisição de aeronaves [os tais 226,75 milhões de dólares], tal como a proximidade das datas dos acordos celebrados (12 e 13 de novembro de 2015), o que suscita a existência de uma relação de causalidade entre a aquisição das ações da TAP SGPS pela Atlantic Gateway, a respetiva capitalização e as obrigações assumidas pela TAP SA, nos contratos celebrados com a Airbus”.
Ainda no âmbito dos acionistas da Atlantic Gateway, a IGF aponta que a TAP assinou com esta empresa um contrato de prestação de serviços de planeamento, estratégia e apoio à reestruturação da dívida financeira, que teve como finalidade o pagamento de remunerações e prémios, entre 2016 a 2020, aos membros do conselho de administração Humberto Pedrosa, David Pedrosa e David Neeleman. Foram atribuídos aos três gestores um total de 4,3 milhões de euros. O relatório conclui que o contrato era uma simulação e permitiu aos administradores “eximirem-se às responsabilidades quanto à tributação em sede de IRS e contribuições para a Segurança Social”.
Também o antigo CEO da TAP, Fernando Pinto é visado na auditoria, pelo recebimento de 326,7 mil euros correspondentes a férias não gozadas, considerando a IGF não “existir base legal ou contratual que sustente este pagamento”.
A IGF questiona ainda “a racionalidade económica” da TAP em participar no negócio da TAP Manutenção e Engenharia Brasil e em não partilhar os riscos e encargos daquela participação com a Geocapital. No documento, admite “perdas muito significativas com aquele negócio pela não recuperabilidade dos valores envolvidos, que, até 2023, ascendiam a 906 milhões de euros”.
Outra chamada de atenção refere-se à contratação de serviços de consultoria, entre 2005 e 2022, no valor total de 400,6 milhões de euros, envolvendo cerca de 1308 entidades. Nesta matéria, a IGF adianta que nos contratos celebrados com a Seabury Aviation Consulting, LLC e KPMG & Associados, no montante global de 11,7 milhões, “não foi possível identificar claramente o beneficiário desses serviços”.