No passado dia 8 de outubro, a seleção do Chile foi derrotada por 2-0 pela do Peru. Nem sempre o futebol anda a par da realidade económica, mas o Clássico do Pacífico reflete muito bem a rivalidade histórica entre estes dois países. Para melhor a compreendermos, teremos de recuar, pelo menos, até ao século XIX. Mais concretamente, às disputas entre o Chile e a Bolívia por uma parte do deserto de Atacama, uma zona rica em nitrato de sódio e explorada por mineradoras chilenas.
As taxas cobradas pelo governo boliviano tornaram-se insuportáveis para as empresas chilenas, que simplesmente se recusaram a pagar. A Bolívia ameaçou com o confisco das propriedades. O Chile enviou um navio de guerra para a zona, e o conflito estalou em março de 1879. Entretanto, invocando um tratado boliviano-peruano de segurança mútua, assinado em 1873, o Peru veio em defesa da Bolívia. Deste modo, se fixaram os oponentes da Guerra do Pacífico (1879-1883), a qual resultou na anexação, por parte do vitorioso Chile, da província boliviana de Antofagasta e da região peruana de Tarapacá.
Digamos, portanto, que motivos não faltam para tanta rivalidade. Hoje, mais presente em duelos futebolísticos. Mas, também em questões de mentalidade política, social e económica. Com efeito, desde o último quarto do século XX que as divergências entre o Chile e o Peru concernem sobretudo os sistemas adotados pelos respetivos países.
O Chile teve uma ditadura militar, entre 1973 e 1990, liderada pelo General Augusto Pinochet. Tratou-se de um regime autoritário que perseguiu e matou cerca de 3000 opositores; sobretudo, guerrilheiros marxistas-leninistas do MIR - Movimento de Esquerda Revolucionária, mas também ativistas e dissidentes do partido socialista e do partido comunista. No que respeita a economia, Pinochet não foi o liberal que dizem. Que liberal é esse que mantém os bancos e a principal indústria do país (o cobre) sob o controle estatal?
É verdade que, nesse período, o Chile reverteu inúmeras medidas socialistas de Allende, além de implementar um modelo económico mais semelhante aos sistemas de livre mercado. E isso teve consequências positivas. Em 1990 - ano que marca o fim do regime militar, após o referendo de 1988 - embora o PIB per capita se mantivesse relativamente baixo ($2000/ano), este havia crescido 50%, e desde a recessão de 1982-83 que estava a crescer a um ritmo anual de 7%. Ainda assim, convém salientar que 1/4 do PIB chileno permanecia controlado pelo Estado.
Por seu lado, o Peru viveu assolado por confrontos entre movimentos revolucionários de esquerda, desde os meados dos anos 60 até à transição do século. Numa primeira fase (1968-1980), entre o Governo Revolucionário das Forças Armadas, da esquerda nacionalista, liderado por Juan Velasco Alvarado, e as guerrilhas do Sendero Luminoso, fundadas por Abimael Guzmán[1]. Numa segunda fase, a eleição democrática de um político de direita, nas eleições de 1980, Fernando Belaúnde Terry, deu origem ao conflito armado peruano (1980-2000).
Este infame conflito teve como opositores o Sendero Luminoso, o MRTA - Movimento Revolucionário Túpac Amaru (herdeiros de Alvarado e do Governo Revolucionário das Forças Armadas) e os sucessivos governos do Peru até ao ano 2000[2]. Desta autêntica guerra civil resultaram aproximadamente 70 mil mortos, sendo que cerca de 30 mil (46%) são atribuídas aos maoistas do Sendero Luminoso.
A história recente destes dois países fornece uma boa explicação para as suas enormes diferenças em termos económicos. Mais adepto do livre mercado, o Chile tem um PIB de 253 biliões de dólares (2020), para uma população de 19 milhões de habitantes, o que se traduz num PIB per capita de $13.231. Por sua vez, sem conseguir livrar-se do seu levado revolucionário, o Peru fica-se pelos $202 B, para uma população de 33 milhões, e um PIB per capita de $6.126.
Felizmente, o mundo não é só economia. No capítulo da gastronomia, por exemplo, o Peru dá verdadeiras lições de cozinha aos seus rivais. Lima é uma cidade mundialmente famosa pela sua culinária, dotada de ex-libris que vão do ceviche, aos anticuchos, à fusão peruana-chinesa (chifa). E o mesmo se aplica ao turismo e património. Poucos países têm o privilégio de ostentar relíquias naturais, arqueológicas e culturais como Machu Piccho (a cidade perdida dos Incas) ou Arequipa (a cidade branca).
Porém, no que toca a pujança empresarial, o Peru simplesmente não se encontra na mesma divisão. Entre as 10 maiores empresas a atuar no país, sete estão sediadas na Região de Lima, destacando-se a Primax (combustíveis, $4.99 B/receitas anuais), do Grupo Romero, que também detém a Alicorp (alimentos e bebidas, $2.78 B/ano). Depois, a InRetail Peru Corp (Grupo Intercorp; Retalho, $3.95 B/ano). E nos serviços financeiros, a Credicorp ($3.17 B/ano), com o Banco de Crédito del Perú ($2.82 B/ano). Importa também mencionar que a mineração ocupa um espaço de relevo, ainda que as maiores companhias de exploração sejam estrangeiras: Southern Peru Copper Corporation (Grupo México, CDMX, $3.15 B); Compañía Minera Antamina (da australiana BHP Billiton e da suíça Glencore; $2.8 B/ano); e Sociedad Minera Cerro Verde (Freeport-McMoRan, Phoenix AZ, $2.54 B).
Deste modo, o top 10 peruano ronda, no seu conjunto, os $32.3 B em receitas anuais. Acontece que o chileno corresponde a mais do triplo, $113.2 B. De facto, só o Grupo COPEC - Empresas Copec (Energia-Multisectores, $18 B/ano) e Copec Combustibles (Petróleo/Gás; $13 B/ano) somam $31 B. Já as gigantes chilenas de retalho, Cencosud - Centros Comerciales Sudamericanos ($12.4 B/ano) e a Falabella ($11.9 B/ano), se destacam pela extensa rede de shoppings, supermercados e lojas que se estendem pelos diferentes países da América Latina, desde o Brasil e Argentina, à Colômbia e, claro, Peru.
Quanto à exploração mineira, é claro que continua a ser um dos negócios mais rentáveis. E tal como no Peru, também as duas principais empresas da área a operar no Chile são estrangeiras. Referimo-nos, concretamente, à australiana BHP - Minera Escondida (australiana, $7.6 B/ano) e à britânica Anglo American ($7.1 B).
A capital, Santiago do Chile, tem 6.8 milhões de habitantes - menos 4 milhões que Lima (10.8 M) - e serve de residência a oito das 10 maiores companhias a atuar no país. É também lá que se encontra sediada uma das companhias aéreas de referência mundial, a Latam Airlines ($3.9 B/ano, em 2020; $10 B, em 2019), com diversos casos de estudo em Harvard - o último deles, claro está, a propósito do ano pandémico, o qual infligiu perdas vertiginosas em todas as empresas de aviação.
Resta, neste momento, saber que futuro terá o Chile, pois talvez o único defeito da prosperidade seja o ser humano acostumar-se demasiado a ela, e tomá-la por garantida. Em geral, o aburguesamento semeia na alma uma tibieza ingrata, que se revolta contra o mundo possível, em prol de sonhos utópicos. Gera a estúpida insatisfação de não termos o Céu na terra, bem como egocentrismos vãos, invejas, ressentimentos. E quando a este contexto se juntam interesses geopolíticos revolucionários, levados a cabo por movimentos internacionais organizados - como é o caso do Foro de São Paulo - a receita para o caos está montada.
Desde 2019 que o país tem sofrido uma onda de protestos. Primeiro, para reivindicar uma nova constituição, mais estatizante, com vista a tornar as pessoas e as empresas dependentes do Estado. Depois, porque sim. Porque a revolução não pode parar, mesmo tendo alcançado as concessões visadas. Ou melhor, sobretudo por tê-las alcançado. Negócios são pilhados e destruídos, igrejas são queimadas, e já morreram dezenas de pessoas.
No próximo 21 de novembro, o Chile vai a eleições. Apoiado pela esquerda "democrática" e o partido comunista, Gabriel Boric lidera todas as sondagens, vários pontos à frente do conservador José Antonio Kast. Bem ou mal, ainda foram precisas várias décadas para, finalmente, os chilenos invejarem a sorte dos peruanos. A continuar assim, lá para 2030, talvez já estejam preparados para cobiçar também a dos cubanos e venezuelanos.
Economista e Investidor
[1] Sucedido pelo General Francisco Morales Bermúdez que, apesar de pertencer à mesma força política, fez um golpe de Estado contra o líder, J. V. Alvarado.
[2] Registe-se que, mesmo nesses 20 anos, a Acción Popular (direita) não teve a hegemonia do poder, tendo intercalado com a APRA - Aliança Popular Revolucionária Americana (esquerda/internacional socialista), que também governou por um período de 5 anos.