
Teria sido um dia como qualquer outro não fosse a notícia que caiu como uma bomba em pleno domingo de agosto, numa época que, por tradição, é de maré baixa nas notícias, agitada apenas por um mar quase ‘flat’ de atualidade estival. O país parou para ouvir, quase ao fim da noite, a comunicação do então Governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa. Em poucos minutos, o império construído por uma das famílias aristocráticas mais antigas do país, ruía como um castelo de cartas. Era o fim de uma era, e o chamado ‘banco das empresas’, um dos grandes financiadores da economia nacional, desfazia-se em cacos. Os estilhaços, lançados em todas as direções, atingiram o coração do sistema financeiro português, abalaram a confiança dos investidores, atirando as grandes empresas presentes no PSI20 para uma desvalorização sem precedentes, e deixaram muitos portugueses sem as poupanças de uma vida.
Este foi um cenário que, como mostra a história, não parecia possível. “Pela dimensão, pela perceção pública de que seria too big to fail, que é a expressão inglesa utilizada para descrever um banco que seria sempre resgatado, impossível de falir”, lembra ao DN o economista Luís Tavares Bravo. O país já se habituara aos resgates financeiros com os casos BPN ou BPP, pelo que as notícias de uma morte anunciada do Banco Espírito Santos (BES) pareciam “manifestamente exageradas”, como diria Mark Twain.
O país esperava que, mais uma vez, o Governo – à época liderado por Pedro Passos Coelho - suportasse o prejuízo, injetando milhões de euros numa instituição que já vivia ‘ligada às máquinas’ há algum tempo, como veio a concluir-se após uma sucessão de escândalos que acabaram por conduzir a fortes críticas ao Banco de Portugal por atuação tardia.
Mas, “se a coragem política do Governo de então, em não colocar em causa os dinheiros públicos para resgatar o grupo é algo de assinalável e que passou uma mensagem de que haveria limites para resgates, também é verdade que a insolvência acabou por trazer problemas aos portugueses que lá tinham as suas poupanças, e que em muitas situações perduram até aos dias de hoje”, salienta Luís Tavares Bravo.
Recorde-se que, já em 2013, havia sinais de problemas no BES e no Grupo Espírito Santo (GES). Sentia-se instabilidade, os danos reputacionais acumulavam-se, e o apertar do cerco do Banco de Portugal acabaria por revelar buracos financeiros em empresas do grupo (desde logo na ESI - Espírito Santo International) e a promiscuidade entre áreas financeira e não financeira. Ao mesmo tempo, vem a público que o presidente do banco, Ricardo Salgado, recebeu milhões de euros do construtor civil José Guilherme e que não os declarou ao fisco. Salgado e Álvaro Sobrinho (ex-presidente do BES Angola) entram em rota de colisão e a luta de poder entre o presidente do Conselho de Administração do BES e o primo José Maria Ricciardi acentua-se.
No ano seguinte, os problemas adensavam-se no GES (empresas com dívidas ocultas e ativos sobreavaliados) e no BES (o banco usava os clientes para financiar empresas do grupo através da colocação de dívida, como papel comercial), mas nos primeiros meses a perspetiva é de que o banco conseguiria estabilizar. O BdP recomenda um aumento de capital e mais de 1.000 milhões de euros são subscritos em junho, apesar de o prospeto indicar já irregularidades financeiras e legais.
Ricardo Salgado é, entretanto, afastado pelo regulador, mas a derrocada prossegue: as ações do BES e da Espírito Santo Financial Group (a ‘holding’ familiar que detinha 25% do BES) tombam em bolsa, empresas do grupo entram em reestruturação, o suíço Banque Privée Espírito Santo atrasa o reembolso a clientes que investiram em dívida da ESI, e começa a fuga de depósitos no BES. O escândalo ganha dimensão internacional, com o Financial Times (FT) e o Wall Street Journal a noticiarem que os mercados internacionais "caem com receios sobre banco português”. O resto da história é conhecido, e sentido, por todos.
Um rombo na economia nacional
Portugal vivia, em 2014, um período conturbado. O país encontrava-se num processo de resgate financeiro que procurava dar um novo fôlego à economia, depois da inevitabilidade do pedido de ajuda externa, reconhecida por Teixeira dos Santos, Ministro das Finanças do governo de José Sócrates, em 2011. Os portugueses viviam de ‘cinto apertado’ e não viam, por isso, com bons olhos uma potencial injeção de fundos em mais um banco falido.
A resolução do BES, que deu origem ao Novo Banco, veio multiplicar o stresse económico e impactar de forma muito negativa todo o sistema financeiro, incluindo a bolsa de valores. “A crise afetou significativamente o PSI 20, que valia cerca de 6000 pontos em agosto de 2014, mas caiu para uma média de 5000 pontos entre 2014 e 2019”, salienta Paulo Monteiro Rosa. O economista sénior do Banco Carregosa sublinha que esta quebra apenas recuperou muitos anos mais tarde – já depois da pandemia -, atingindo os 6600 pontos. Contudo, “o número de empresas no índice reduziu-se, levando à sua renomeação para PSI em 2023, sendo agora composto por apenas 16 empresas”, reforça o economista.
Nos doze meses que se seguiram à queda do BES, Paulo Monteiro Rosa revela que se estima uma quebra entre 25 e 30% do valor da bolsa portuguesa, cerca de 12 mil milhões de euros, ou 7,5% do Produto Interno Bruto (PIB) português na altura.
Mas, além do mercado de investimentos, os efeitos negativos fizeram igualmente sentir-se na banca. A desconfiança de pequenos e grandes investidores retirou milhares de milhões de euros dos bancos, o que obrigou as entidades bancárias a reforçar os seus capitais próprios e a adotar boas práticas de sustentabilidade e de solidez financeira. “A rentabilidade do capital próprio aumentou de -0,4% para 15,5%, beneficiando da melhoria da eficiência da operação, patente no recuo do indicador cost-to-income (custos sobre proveitos) de 60% para 39%”, aponta Óscar Afonso. O professor na Faculdade de Economia do Porto destaca igualmente o “claro reforço da capitalização, com realce para o incremento do indicador de fundos próprios de nível 1 (Common Equity Tier 1, CET 1, na sigla inglesa) de 11% para 17%”, verificado deste então.
O esforço da banca em recuperar a credibilidade perdida contou com a ajuda do regulador que reforçou a supervisão, incentivado pelas políticas monetárias do Banco Central Europeu (BCE). “A gestão dos bancos acompanhou essa maior exigência, tornando-se mais profissional – e menos próxima do poder político –, o que se refletiu numa melhoria dos indicadores do setor entre março de 2014 e março de 2024 (dados do Banco de Portugal)”, sublinha Óscar Afonso. Uma opinião partilhada por Luís Tavares Bravo que reforça a importância de, 10 anos depois, os reguladores apresentarem medidas para evitar situações similares. Resta saber, questiona o economista, se, apesar das regras que defendem os clientes, “o excesso regulatório não será também um bloqueio ao normal desenvolvimento da atividade bancária, que enfrenta enormes desafios nos próximos anos”.
Não obstante o impacto social que ainda perdura, com uma quantidade considerável de lesados ainda por indemnizar e um custo para o Estado superior a 8.000 milhões de euros (em recapitalizações do Novo Banco) e com tendência para aumentar, as boas notícias parecem indicar que o país não corre o risco de que uma situação destas se repita. “A banca acelerou a digitalização, intensificou o foco em sustentabilidade e na inclusão financeira”, aponta Óscar Afonso. Mudanças que complementam outras, como “a criação de uma cultura de exigência, a clareza e transparência da informação e o reforço da coordenação entre as autoridades”, conclui Paulo Monteiro Rosa, economista do Banco Carregosa.
Com C.A.R. e Lusa
Óscar Afonso, Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto
Todos nos recordamos da resolução do BES e do forte impacto na sociedade, que passados 10 anos ainda persiste, com processos ainda em tribunal, lesados ainda por indemnizar e um custo para o Estado acima de 8000 milhões de euros (em recapitalizações do Novo Banco) e que ainda deverá subir, entre deve e haver, até que tudo esteja terminado, daqui a muitos mais anos.
O foco deste pequeno artigo é o que mudou na nossa banca. Parece consensual que a banca se adaptou às políticas monetárias do BCE, a supervisão está mais apertada e a gestão dos bancos acompanhou essa maior exigência, tornando-se mais profissional – e menos próxima do poder político –, o que se refletiu numa melhoria dos indicadores do setor entre março de 2014 e março de 2024 (dados do Banco de Portugal).
O ativo bancário sobre o PIB baixou de 2,8 para 1,68 e o rácio de transformação (crédito sobre depósitos) de 117% para 77%, mostrando que a desalavancagem prosseguiu após o fim do programa de ajustamento.
A rentabilidade do capital próprio aumentou de -0,4% para 15,5%, beneficiando da melhoria da eficiência da operação, patente no recuo do indicador cost-to-income (custos sobre proveitos) de 60% para 39%.
Observou-se também um claro reforço da capitalização, com realce para o incremento do indicador de fundos próprios de nível 1 (Common Equity Tier 1, CET 1, na sigla inglesa) de 11% para 17%.
A manterem-se as melhorias na supervisão, gestão e menor proximidade da banca ao poder político, estou confiante de que não teremos outro episódio como o do fim do BES. Adicionalmente, a banca acelerou a digitalização, e intensificou o foco em sustentabilidade e inclusão financeira.
Paulo Monteiro Rosa, economista sénior do Banco Carregosa
A resolução do BES em 3 de agosto de 2014, pelo Banco de Portugal, impactou profundamente a bolsa portuguesa e o seu principal índice, o PSI 20. A crise foi desencadeada pela falta de pagamento de uma dívida por uma empresa do Grupo Espírito Santo (GES) em 25 de junho de 2014, gerando desconfiança e descapitalização do BES. O Banco de Portugal dividiu o BES num "bad bank" para os ativos problemáticos e no Novo Banco, que herdou a maioria das operações e ativos do BES, sendo capitalizado com 4,9 mil milhões de euros pelo fundo de resolução, financiado pelos bancos portugueses e com um empréstimo de 3,9 mil milhões de euros do Estado.
A crise afetou significativamente o PSI 20, que valia cerca de 6000 pontos em agosto de 2014, mas caiu para uma média de 5000 pontos entre 2014 e 2019. Após a pandemia, o índice recuperou ligeiramente para 6600 pontos, mas o número de empresas no índice reduziu-se, levando à sua renomeação para PSI em 2023, composto por apenas 16 empresas.
O colapso do BES impactou também a Portugal Telecom (agora Pharol), cujo empréstimo de 897 milhões de euros à Rio Forte afetou a fusão planeada com a OI e resultou numa queda de 80% no valor da empresa num ano. A desconfiança no setor financeiro português refletiu-se nas cotações dos bancos, e o PSI 20 perdeu 20% até ao final de 2014, movimento contrário às principais bolsas mundiais. Estima-se que a crise do BES tenha retirado entre 25% a 30% do valor da bolsa portuguesa até agosto de 2015, cerca de 12 mil milhões de euros, ou 7,5% do PIB português na altura.
Várias lições foram aprendidas e medidas tomadas pelas autoridades nacionais, destacando-se a criação de uma cultura de exigência, a remoção de conflitos de interesses, a clareza e transparência da informação e o reforço da coordenação entre as autoridades. Reforçar os poderes de supervisão e evitar que bancos façam parte de conglomerados mistos foram recomendações importantes. A proteção dos clientes de retalho também foi enfatizada para evitar casos como os dos "lesados do BES". Contudo, como disse Mark Twain, a "História não se repete, mas às vezes rima".
Luís Tavares Bravo, economista e presidente do International Affairs Network
A falência do Grupo Espírito Santo foi o evento em Portugal que pode ser considerado o Lehman português. Pela dimensão, pela perceção pública que seria too big to fail, que é a expressão inglesa utilizada para descrever um banco que seria sempre resgatado, impossível de falir.
Se a coragem política do governo de então, em não colocar em causa os dinheiros públicos para resgatar o grupo é algo de assinalável, pelo que representou também em termos de mensagem de que haveria limites para resgates, também é verdade que a insolvência acabou por trazer problemas aos portugueses que lá tinham as suas poupanças, e que em muitas situações perduram até aos dias de hoje - a verdade é que não há ainda hoje conhecimento de processos concluídos de liquidação e recuperação de bens do grupo que possam ser considerados minimamente relevantes, o que por si constitui uma evidência de ineficiência do sistema num processo que – também importa dizer – assenta numa complexa combinação de empresas nacionais e internacionais, e a necessidade de execução em jurisdições distintas.
Os pequenos investidores não profissionais sobretudo, continuam com pouca esperança em recuperar parte das suas poupanças, num processo onde é claro que existiram processos de venda indevida. Por outro lado, 10 anos depois, os reguladores tomaram medidas para evitar situações similares – sobretudo no que diz respeito aos conhecimentos e experiência dos clientes não profissionais.
Mais regulação e exigência para que não se voltem a repetir situações similares. As instituições europeias criaram regras mais exigentes relativamente aos balanços dos bancos, e sobre as condições em que se produz negócio. Será discutível se estas regras – que trazem mais questionários e burocracia– trazem também melhores condições para que os clientes estejam efetivamente mais defendidos, ou se o excesso regulatório não será também em si um bloqueio ao normal desenvolvimento da atividade bancária, que enfrenta enormes desafios nos próximos anos.
Pedro Lino, economista e CEO da Dif Broker e Optimize
A intervenção no BES trouxe ao de cima algumas práticas comerciais mais agressivas que se revelaram fatais para muitos clientes e para a própria instituição. Algumas delas eram transversais ao sistema financeiro e já tinham demonstrado ser destruidoras de riqueza.
Os empréstimos com garantia das ações ou de títulos de dívida do banco ou de empresas do Grupo, empréstimos para comprar ações de empresas do grupo em aumentos de capital ou a comercialização dos produtos do Grupo nos balcões do banco, revelaram-se autênticos conflitos de interesse, uma vez que os incentivos comerciais sobrepunham-se aos reais interesses dos clientes, que muitas vezes não sabiam onde estavam realmente a investir.
Desde então assistimos a inúmeras alterações no que diz respeito aos investimentos, com as entidades de supervisão a definirem regras mais estritas quanto à comercialização de produtos de investimento, e a obrigarem as instituições financeiras a salvaguardarem os riscos reputacionais e a mitigarem conflitos de interesse.
A banca reestruturou-se, alguns bancos mudaram de dono, outros desapareceram ou foram incorporados em grupos financeiros. A recente subida dos juros evitou que outras instituições, ainda debilitadas, necessitassem de intervenção uma vez que os juros elevados permitiram um aumento da rentabilidade que de outra forma seria muito difícil alcançar para equilibrar contas.
Os investidores nacionais, esses, ficaram muito traumatizados com o investimento não só em ações, mas principalmente pela componente do investimento em dívida, ou obrigações, cujo risco deveria ser menor. Até hoje muitos deles não têm qualquer noção se do processo de liquidação do BES e do Grupo, irão receber algum valor pelo investimento que confinam. A demora nos processos de liquidação apenas destrói valor emocional e monetário.
O sistema financeiro está, dez anos depois, muito forte, com mais capital, maior nível de avaliação de risco dos seus clientes e maior resiliência a choques internos e externos.