As queixas de serviços públicos apresentadas à Provedoria de Justiça aumentaram no último ano em 19%, para 11 557 novos processos abertos, num "recorde absoluto" em 46 anos de atividade do órgão independente do Estado encarregado de zelar pelos direitos dos cidadãos.
O dado foi avançado nesta quarta-feira pela Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, em audição parlamentar na Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local, em véspera da entrega do relatório anual do órgão aos deputados.
"Cada ano que passa, a Provedoria de Justiça tem um recorde histórico de queixas apresentadas. No ano de 2020, temos um recorde absoluto desde a sua fundação há 46 anos", indicou a Provedora em resposta a questões do PSD, que pediu a audição para discutir o estado da resposta dos serviços públicos.
Segundo Maria Lúcia Amaral, o aumento de queixas foi de 19% relativamente a 2019, com subidas de 48% e 68% na comparação com os anos de 2017 e 2016, respetivamente.
"É possível dizer que são deficiências estruturais que se tornaram conjunturais por causa da pandemia", reconheceu. No entanto, Maria Lúcia Amaral adiantou não ter dados para atribuir o aumento das queixas aos constrangimentos da pandemia.
Reconhecendo que "houve capacidade de resposta" dos serviços públicos após o estado de emergência da primavera passada, a Provedora notou que "houve uma perturbação imensa". "A grande dificuldade é no acesso à informação", notou.
Maria Lúcia Amaral afirmou que há sectores críticos no que toca a queixas dos cidadãos que já antes enfrentavam dificuldades e que terão piorado devido à pandemia, havendo outros em que o atendimento não era alvo de queixas, mas foi penalizado com as restrições do confinamento.
"Todos temos de fazer uma reflexão conjunta porque embora possa haver várias razões que poderão explicar este aumento exponencial de queixas junto da Provedoria de Justiça, que é um observatório independente em matéria de transparência do que se vai passando, este aumento exponencial de queixas tem-se vindo já a agravar há vários anos de forma consistente. Alguma coisa se passa", apelou a Provedora.
Até, porque, indicou na audição, em 2021 as queixas continuam a aumentar. "No primeiro quadrimestre de 2021, as queixas que recebemos - os dados ainda não podem ser tratados, porque para serem fiáveis têm de ser tratados anualmente - terão sido entre mais 30% a 40% do que no período homólogo de 2020".
Dos dados que constarão do relatório anual sobre 2020 que será disponibilizado amanhã, a Provedora de Justiça identificou dois tipos novos de queixas que têm vindo a aumentar, e que "já eram uma tendência antes da pandemia". Designadamente, as queixas relacionadas com habitação e as queixas relacionadas com os direitos dos estrangeiros e dos imigrantes.
No caso da habitação, são, segundo Maria Lúcia Amaral, queixas que visam câmaras municipais e o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, e que envolvem sobretudo cidadãos em situação mais vulnerável e o acesso a habitação social. Neste último ano, informou, a Provedoria começou também a receber queixas de pessoas em situação de sem-abrigo.
No último ano, aumentaram também as queixas relacionadas com serviços públicos na saúde, na educação e nos registos e notariado.
"Quanto à saúde, houve um aumento imenso, porque não recebíamos queixas neste domínio, não era habitual", informou, dando conta de uma subida que rondará os 60%. A paralisação das juntas médicas e da emissão dos atestados multiuso foram o principal problema identificado.
Na educação, destacaram-se os problemas relacionados com a passagem ao ensino à distância. "Era aflito: as zonas do país onde as pessoas não tinham pura e simplesmente acesso porque não havia rede, caía, as escolas não tinham", descreveu, elogiando a ação das estruturas locais, inclusive do sector social, para resolver os problemas: "desde problemas alimentares até problemas de acesso a comunicação".
Nos registos e notariado, a Provedora de Justiça deu conta de muitos atrasos nos atos que exigiam a presença de cidadãos, como na emissão do cartão do cidadão.
Na audição, Maria Lúcia Amaral deu ainda conta de que receber queixas não apenas dos utentes dos serviços, mas também de trabalhadores desses mesmos serviços. "Também recebi queixas de funcionários públicos quanto às condições de trabalho e situações de trabalho instável", disse aos deputados.
De resto, destacaram-se no último ano todas as questões relacionadas com os apoios sociais e económicos mobilizados em resposta à pandemia - fosse relativamente ao desenho das medidas ou à sua aplicação.
Maria Lúcia Amaral destacou as queixas sobre concessão de apoios na área da cultura, operacionalizados pelo Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais do Ministério da Cultura, mas também as queixas que visaram a Segurança Social relativas ao apoio extraordinário à retoma da atividade, para empresas, e apoio extraordinário à redução de atividade, para trabalhadores independentes e sócios-gerentes. "Foi uma avalanche, sobretudo a partir de março de 2020".
Sobretudo, os apoios chegavam tarde aos beneficiários, indicou, considerando que tal foi reflexo de deficiências que já existiam antes. Num exemplo, "os registos imperfeitos sobre a existência de dívidas" nos dados da Segurança Social, que vedaram apoios a muitas empresas por falta de fiabilidade no cruzamento de dados.
Maria Lúcia Amaral contrapôs o avanço da modernização digital na administração tributária ao atraso neste domínio nos serviços da Segurança Social que prestam apoio aos cidadãos. "O Estado recolector age bem. O Estado que apoia é o exemplo oposto", defendeu.
Há, segundo a provedora, uma diversidade de situações na Administração Pública no que toca à transição digital "que não é tolerável".