Rachel Muller: "Acho que é de duvidar de quem tem muitas certezas nesta altura"

Licenciada em Medicina Dentária, a nova diretora-geral da Nestlé Portugal é uma curiosa inveterada que faz da tranquilidade um modo de vida. Veja aqui a primeira entrevista desde que chegou a Portugal

Chegou à redação do Dinheiro Vivo, onde tínhamos encontro marcado, cerca de 15 minutos antes da hora marcada - o que significa que, se não soubéssemos de antemão que não é portuguesa, descobriríamos só por esse [não tão] pequeno detalhe.

Rachel Muller tem um nome austríaco - mas sempre foi tratada por Raquel, assim mesmo em português - graças aos avós, mas foi o Brasil que a viu nascer e crescer e é com um delicioso sotaque do sul daquele país que tempera a conversa de cerca de 40 minutos que teve com o Dinheiro Vivo no início desta semana. Fluente em português, inglês e espanhol, fala também francês, “mas alemão não”, admite com um sorriso. “Aprendi um pouco quando era pequena, mas depois não segui”, acrescenta.

Aos 49 anos, a executiva chegou a Portugal no início deste ano para substituir Anna Lenz como diretora-geral da Nestlé Portugal, um cargo que a deixou entusiasmada e otimista, ainda que continue “à espera do bom tempo que me venderam. Acho que vou ter de renegociar as minhas condições”, brinca ainda antes de começarmos a gravação da primeira entrevista que deu a um orgão de comunicação social no país.

Licenciada em Medicina Dentária, profissão que exerceu durante sete anos, Rachel percebeu durante esse tempo que a curiosidade que sentia desde criança talvez não fosse totalmente suprimida com a profissão que escolhera. “É uma área em que a especialização acaba por estreitar o foco, ao invés de aumentar”, salienta. O que era exatamente o que não queria.

Decide então fazer uma mudança de carreira e entra numa das maiores agências de publicidade do mundo, a McCann, para a área de gestão de projetos. Depois de viver na Colômbia e em Porto Rico, é quando está no México que entra na Nestlé, por um feliz acaso. Na altura estava vinculada à McCann, e a Nestlé era cliente da agência. O seu superior hierárquico de então sempre lhe disse que era importante que mantivesse com a retalhista uma boa relação profissional, recorda agora divertida. O que não esperava era que Rachel acabasse mesmo por se mudar para a empresa responsável por marcas como Chocapic, Nesquick ou o Nestum.

Entrou na empresa em 2010 como Marketing Manager e, a partir de então, foi subindo na estrutura da multinacional, primeiro no México, onde acabaria por viver quatro anos, outros quatro no Brasil e os últimos dois na Suíça, onde ocupou o cargo de Vice-President Manager para a América do Sul.

“Eu digo sempre que mudar de país é uma oportunidade para uma reinvenção, porque voltamos a fazer um pacto connosco: quais são os seus hábitos? Quais são os seus amigos? Onde vai morar? É uma oportunidade. E eu acho que a Suíça foi uma oportunidade”, conta quando lhe perguntamos que principais diferenças sentiu ao mudar-se para o Estado mais neutro da Europa. “E acho que há uma parte de ritmo. O ritmo da América Latina é muito forte”, admite. “Do ponto de vista pessoal, ganha-se qualidaed de vida, e até em termos de espaço mental, porque há menos coisas a acontecer”, continua. Quanto à mudança para Portugal, sente-a como uma nova oportunidade desses recomeços em que acredita.

A empresa suíça, que celebrou 100 anos de presença em Portugal em 2023, emprega quase 3000 trabalhadores de mais de 50 nacionalidades e tem sido reconhecida como uma das melhores para trabalhar no país. Rachel destaca as possibilidades de crescimento dentro da estrutura, não apenas verticalmente - ou seja, para cargos superiores - mas também em termos de transversalidade de setores em que é possível operar. No seu caso pessoal, passou pelo café, pelos cereais, pelas bebidas e, quando lhe pedimos que escolha a que mais a marcou, não tem grandes dúvidas: “Acho que a minha a minha entrada na Nestlé foi muito importante. Descobri o que era a Nestlé estando dentro da Nestlé, faz 15 anos. É um momento que guardo, assim muito importante, até porque tive o privilégio de, na época ter dois, três meses de imersão antes de realmente assumir o negócio, uma vez que vinha de fora. Então passei tempo nas fábricas, no centro de distribuição, com o pessoal de vendas... E isso eu acho que é muito enriquecedor. Até hoje são coisas que eu carrego comigo desse período”.

“A única coisa que controlamos é a possibilidade de fazer bem o trabalho que temos hoje”

Apesar da rápida ascenção dentro da empresa - entrou em 2010 e em 2025 está a liderar a operação de um país - garante que nunca pensou na sua carreira de forma estruturada. “Não pensei. Esse até é um assunto de que eu gosto de falar. Porque eu acredito que a única coisa que controlamos é a possibilidade de fazer bem o trabalho que temos hoje. E o que vem depois são tantas variáveis que é muito difícil controlar”, explica. “Então, eu ponho muito pouca energia pensando no meu passo seguinte. Muito pouco”.

“Acho que, se em cada trabalho que tivermos, pusermos o melhor de nós, as portas vão sempre abrir-se. E digo sempre: acho que nas empresas há sempre espaço para quem quer fazer e tem talento. Há espaço e vai sempre haver uma oportunidade. E é a fazer bem feito que conseguimos abrir essas portas”, deixa, em jeito de conselho.

Pedimos-lhe, então, que olhe para a atualidade, uma vez que pegou nas rédeas da Nestlé no meio de uma espécie de tempestade perfeita: não só Donald Trump tinha assumido a presidência norte-americana e iniciado uma guerra comercial que ainda ninguém sabe como vai acabar, como o governo português caiu pouco tempo depois, o que empurrou o país para as eleições que vão ter lugar neste domingo. Entretanto, o conflito na Ucrânia ainda não abrandou, e em Israel continua a escalar. Que é como quem diz: a única coisa de que podemos ter certeza é de que há ainda muita incerteza à espreita. Como é que se chega, então, a uma empresa nova, num país novo, e se trabalha no meio deste contexto, numa organização que tem presença nos quatro cantos do mundo?

“Creio que esse momento da História, especificamente, é de poucas certezas. E acho que é de duvidar de quem tem muitas certezas nesta altura, não é?”, atira.

“Mas eu vejo que a Nestlé tem uma missão tão clara e tão sólida com a história que nós temos, que é a de melhorar a qualidade de vida das pessoas através dos alimentos, que acho que isso é transversal e é um pouco da beleza do trabalho que fazemos, independentemente do contexto externo”, salienta. “Nós temos muito claro o que temos de fazer e como aportar. E então acho que aí cabe a gente ficar sempre aberto a ajustar o que for necessário, porque acredito que, também nesses tempos, flexibilidade é algo muito importante”, porque ajuda a “entender onde a gente pode agregar mais valor.

Além disso, salienta, o facto de a Nestlé ser uma empresa com mais de um século e tanta experiência em termos internacionais acaba por ser uma mais-valia. “É uma mistura de privilégio e de responsabilidade. Uma empresa como a Nestlé, com a história que nós temos, com o tamanho que nós temos, tem uma responsabilidade, sem dúvida. Mas também acho que isso traz uma base muito sólida euma certa disciplina. Nós sabemos operar. Sabemos executar. Mas também acredito que temos de combinar isso com inovação, com olhar para frente, com trazer quase uma alma de startup para dentro dessa grande empresa, para ter a abertura e a flexibilidade de responder às necessidades que surgem”. E garante que, apesar da dimensão e da idade, a Nestlé ainda tem essa agilidade porque “quem faz a diferença são as pessoas. E eu sempre falo: não tem um tema no mundo da alimentação que você queira aprofundar e não tenha alguém especializado nisso”, continua. “ Então, querendo procurar essas oportunidades, eu acho que dá para ser flexível. Claro que temos desafios,porque precisamos de escala, não é? Mas eu eu gosto muito dessa combinação de ser grande, de ter essa força, mas ao mesmo tempo ter as antenas muito ligadas para poder responder e construir os próximos 100 anos. Porque esse é o desafio”, resume.

E, lembra, a Nestlé “tem no seu ADN a inovação e a aposta em ciência e tecnologia”, o que tem ajudado a navegar tempos onde as tendências mudam de forma cada vez mais acelerada e em termos globais. “A gente tem, por exemplo, aqui a operar em Portugal, em Lisboa, um hub de operações de marketing que se dedica, através de Inteligência Artificial, a fazer a personalização de dados, o que permite alterar a forma como se entrega a informação a cada consumidor, bem como adaptar peças de marketing a Portugal e a outros mercados. Portanto, acredito que o uso da tecnologia ajuda muito a conseguir manter essas antenas bem aguçadas para entender o que está a acontecer e a poder entregar”, nota. “Porque hoje também se passa isso, não é? Não só as pessoas querem mais qualidade, como também querem o que elas querem. Não querem ver o que não interessa. Ninguém mais tem tempo para ver o que não interessa. Então acho que, isso por um lado, e por outro lado com o tema da sustentabilidade, o tema de tecnologia também passa a ter um papel muito importante”, lembra, referindo projetos implementados na área da agricultura regenerativa, por exemplo - “A gente está fazendo um trabalho super bonito aqui no Alentejo com produtores de cereais”, aproveita para recordar.

No mesmo sentido, fala dos satélites que permitem ir controlando os tempos das colheitas, as regas feitas gota-a-gota somente quando os solos precisam e do efeito dominó que esta atenção à sustentabilidade acaba por ter nos pequenos produtores com quem a empresa trabalha.

É também de inovação que se fala quando, sublinha, se apresenta ao mercado novos produtos, dentro de gamas bem conhecidas do público - como o Nestum - que agora aparecem com novas opções como sendo o Nestum Pro, que tem um acréscimo de proteína, ou o Nequik 0%, que retirou todos os açúcares adicionados. Nas papas, a Nestlé mantém o compromisso com a investigação no centro, em Lausanne, para garantir o maior cuidado para os bebés, lembra ainda.

Uma liderança tranquila e focada

O dia regular de Rachel Muller - ou seja, quando não inclui entrevistas ao Dinheiro Vivo que lhe tomam espaço na agenda - começa por volta das 6h30, com um pequeno-almoço em família sem grandes pressas. Quando a filha vai para a escola, Rachel vai para o escritório, onde chega por volta das 8h30 e onde o mundo social - família e amigos - desaparecem. “Quando eu estou dentro da empresa, eu estou realmente focada. Não atendo, não vejo mensagens... e como eu gosto do que faço, o tempo vai passando e eu não vejo nada”, conta, divertida. “Depois tenho várias reuniões e às vezes algum evento”. Mas às 18h30, no máximo às 19h, está de volta a casa. “E aí é o momento de jantar e muitas vezes eu cozinho. o nosso jantar”. E é perentória quanto à questão seguinte: “Não, eu não trabalho depois do jantar, a menos que seja uma exceção. Prefiro ficar meia hora a mais no trabalho, se for preciso, do que trabalhar em casa. E acho que também é um exemplo para minha filha”, reitera. “Creio que chegar a casa e abrir o computador para trabalhar não é ideal. Então, se é uma exceção, sem problema, mas normalmente, não!”.

Depois disso, dedica-se ao tempo com a família, à leitura - de livros de negócios ou de história ou geografia - e tenta deitar-se relativamente cedo. Adepta da meditação e do ioga, Rachel tem uma agenda perfeitamente organizada - e até arranjou tempo para receber o Dinheiro Vivo mais tarde, já na sede da Nestlé, em Linda-a-Velha, onde foram feitos os seus retratos no edifício. Com uma disponibilidade sempre pontuada por um sorriso sereno e uma segurança desarmantes.

Três meses depois de ter chegado a Portugal afirma que é cedo para traçar objetivos ou deslindar estratégias para a operação, mas garante que não deixará de fazer aquilo que sempre marcou o seu percurso dentro da empresa: dar o seu melhor no trabalho que tem em mãos, tendo “ tempo para ouvir verdadeiramente as pessoas e encontrando sempre esse equilíbrio entre avançar, evoluir e respeitar a origem do que nos fez ser a Nestlé Portugal. Acho que essa interseção é sempre uma linha muito ténue que temos de respeitar, mas que faz toda a diferença”, conclui.

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