Nos últimos meses, decisores políticos e líderes de várias entidades influentes no panorama económico mundial (como Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional, grandes bancos globais, empresários conhecidos, economistas-chefes anónimos) têm tentado controlar a narrativa da crise, travando leituras e prospetos mais duros e incisivos quanto ao futuro, como se antecipar cenários económicos mais graves fosse um ato apaixonado e não antes uma tentativa de aviso sincero e sério à navegação de famílias, empresas, investidores nestes tempos de tumulto.
É bom começar a dizer às pessoas que pode haver uma recessão escondida com rabo de fora. Que a inflação que hoje já corrói o poder de compra dos consumidores (sobretudo dos mais pobres) pode desabar num retrocesso de enormes dimensões quando em 2023 muitas empresas se recusarem a aumentar salários, com o apoio moral dos políticos, a acenarem com o papão da espiral inflacionista.
O antídoto é sobejamente conhecido: será colocar o ónus do lado dos trabalhadores, que terão, uma vez mais, como sempre na História recente do mundo desenvolvido, de ajustar e pagar a crise do próprio bolso, sobretudo os trabalhadores precários, isolados, mais jovens, menos qualificados, não sindicalizados. A imensa minoria de sempre. E o regresso dos despedimentos e do desemprego.
A recessão que vem com a desvalorização interna terá agora um plus: as taxas de juro estão e vão subir ainda mais ameaçando os endividados de empobrecimento rápido. Para muitos, a coisa está malparada.
Mesmo sem recessão oficialmente decretada, é bom lembrar Alan Blinder, professor de Economia e antigo vice-presidente da Reserva Federal durante a era de Alan Greenspan à frente do maior banco central do mundo. "Se tivermos um crescimento muito baixo, isso vai ser sentido como recessão por muitas pessoas", disse o economista à CNBC, esta semana.
O drama da desdramatização
O que tem pautado os últimos meses, sobretudo desde que rebentou a guerra da Rússia contra a Ucrânia, é um discurso de desdramatização da gravidade dos problemas que já enfrentamos (que acumula com os da pandemia, que não terminou, até se agravou, convém lembrar) e que vão crescer como um vírus já este ano, contaminando gravemente 2023 e sabe-se lá o que mais.
São os políticos e decisores a dizer que isto vai passar, que a inflação é alta mas vai ser temporária, que recessão nem pensar, é apenas um sonho mau.
Estamos a chegar a meio do ano, a guerra dura há mais de três meses e há quem comece a duvidar de tanto sonambulismo e otimismo militante.
A inflação que em abril do ano passado estava quase colada aos 0%, está agora acima de 7%.
E há decisores que, sacando da desculpa "agora já temos mais informação", tentam fugir do ridículo e evitar o número batido do "nunca pensei que fosse tão grave".
É grave e é galopante. A cada dia que passa, a Europa e os Estados Unidos parecem mais perto da recessão. Há uma recessão escondida com o rabo de fora e as expectativas das famílias e dos investidores são claramente mais sombrias. Engana-se uma vez, duas já é mais difícil.
No início de abril, o Deutsche Bank dizia que os Estados Unidos estavam a caminho de uma recessão leva. Agora, já diz que "vai ser grande".
Podemos começar com o exemplo de Christine Lagarde e do BCE.
Em dezembro de 2021, com os primeiros sinais de estrangulamento nos abastecimentos de mercadorias alimentares e com o petróleo a aquecer, os sinais de subida da inflação apareceram.
A primeira medida para começar a subir o custo efetivo do dinheiro (subir os juros sem subir ainda as taxas diretoras) foi descontinuar o programa pandémico de compras de obrigações e outros títulos. Acabou em março.
Depois a ideia era reduzir o ritmo do maior programa de todos, o APP, mas mantê-lo ativo "enquanto necessário" do terceiro trimestre deste ano em diante com compras mensais de 20 mil milhões de euros.
Passaram apenas três meses e aconteceu a primeira grande guinada do BCE. O ritmo de desmame foi reduzido de forma substancial e em princípio o APP pode até terminar já em junho. O que vier a ser decidido para o terceiro trimestre "dependerá dos dados" que o BCE vai analisar.
Ora, a inflação não dá tréguas, a economia europeia ainda parece que consegue crescer (pouco). Assim, está cada vez mais claro que a subida de taxas de juro diretoras no "terceiro trimestre" deve acontecer logo em julho. Depois as economias vão a banhos relaxar e carregar baterias para o longo inverno que se adivinha no final de 2022 e em 2023
Neste ato contínuo, convém lembrar que Lagarde defendia com unhas e dentes a noção de que esta inflação era sobretudo temporária, transitória.
Mas a forma assertiva teve uma modulação nas últimas semanas. Primeiro, veio a público dizer em alto e bom som que as taxas de juro vão começar a subir "algum tempo após" o fim dos programas de compras. Por isso julho é tão provável.
E disse mais. A inflação que era tão transitória parece estar a ser importada. Lagarde referiu o efeito desfavorável dos termos de troca. A zona euro precisa de importar tanta coisa que está cada vez mais cara e isso pode induzir pressões não temporárias, mas antes persistentes de meses ou até anos. Veja-se o caso do gás russo. Emancipação no final deste ano, propalam os políticos em Bruxelas. Mas dá? Vai mesmo acontecer a 31 de dezembro?
Portanto, quando menos temporária for a inflação, mais cedo e mais depressa os juros vão subir.
Já falámos da recessão latente quando em 2023 os salários (sobretudo no setor privado, empresarial) tenderem a não acompanhar em nome da competitividade e da viabilidade das empresas.
Medina no país das maravilhas
Falta só refletir um pouco sobre o estado "feels good" que hoje paira nas contas públicas e que leva um ministro das Finanças da zona euro, como o português Fernando Medina, que tem de dar a cara por um dos fardos de dívida pública mais pesados do mundo desenvolvido, a dizer a dezenas de jornalistas que Portugal não precisa do período de pausa e exceção na aplicação das regras duras do Pacto de Estabilidade, embora não se oponha à medida.
Como se os juros da dívida (que são despesa que vai ao défice) não fossem fazer mossa na condução elegante e causar mácula nas contas públicas de um dos países mais pobres e desiguais da zona euro.
Medina ainda não reparou na recessão escondida com rabo de fora e recusa-se a ver a destruição que a inflação alta deste ano vai provocar em 2023. É uma catapulta.
Como reparou recentemente o Conselho das Finanças Públicas (CFP), a entidade independente que avalia a qualidade das Finanças portuguesas, "no médio prazo, a inflação irá necessariamente provocar uma pressão significativa na despesa pública", no próximo ano.
"O custo das novas colocações de dívida pública subirá", isto é, com mais inflação, as taxas de juro sobem.
"A evolução das pensões em 2023 depende de uma fórmula legal que tem em conta o Índice de Preços no consumidor (IPC) e a evolução do Produto Interno Bruto (PIB)", pelo que a subida das reformas pode surgir com muito mais força, com aumentos automáticos nunca vistos de 5% ou 6%.
Na despesa com salários públicos, "as negociações serão pressionadas pela perda de poder de compra em 2022", lembra o CFP. Como referido, os funcionários tiveram um aumento de 0,9%. O descontentamento dos sindicatos tem-se revelado cada vez maior e o OE2023 vai ser feito a ferro e fogo por causa disso.
"Os novos contratos de aquisição de bens e serviços refletirão preços necessariamente mais elevados", seguindo as referências inflacionistas mais recentes.
E "os concursos para investimentos suportados pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) sofrerão impacto, o que se pode traduzir num menor volume de investimento para os mesmos fundos", avisou o Conselho português.