Cerca de 80 portugueses que trabalham na construtora saudita Saudi Oger estão há nove meses sem receber salários e subsídios de alojamento. Sem dinheiro para comprar o bilhete de volta e, em muitos dos casos, com as autorizações de residência já expiradas, estão presos num país dependente de uma matéria-prima que, em dois anos, perdeu mais de metade do seu valor. Uns vivem em apartamentos partilhados, outros em campos de trabalho "onde falta tudo".
O caso – que já tinha sido noticiado pela SIC Notícias – é relatado ao Dinheiro Vivo por trabalhadores nestas condições, que, por questões de segurança, mantêm o anonimato. As denúncias foram feitas a propósito de um artigo publicado esta semana, que dá conta da situação vivida por milhares de trabalhadores de construtoras sauditas.
O cenário relatado pelos portugueses tem início no final do ano passado, altura em que os preços do petróleo começam a afundar drasticamente, pressionados pelo excesso de oferta face à procura, para, já em janeiro deste ano, baterem no fundo e baixarem da fasquia dos 30 dólares por barril.
Isto num contexto em que nenhum dos membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) se mostrava (ou mostra, ainda hoje) aberto a cortar na produção para, dessa forma, aliviar as quedas dos preços. Entretanto, os preços da matéria-prima recuperaram e estão hoje a negociar acima de 40 dólares por barril, mas os valores ficam ainda muito aquém do que os que se viam em 2014, quando um barril de petróleo custava mais de 100 dólares.
Para as contas de países que vivem quase exclusivamente do petróleo, o impacto é óbvio. O Politico explica este cenário de forma relativamente simples: nos dez países da OPEP onde o petróleo representa mais de 85% das receitas provenientes de exportações (onde se inclui a Arábia Saudita), as consequências são particularmente desastrosas.
A estabilidade destes regimes assenta num "pacto" em que as grandes petrolíferas garantem "fundos" aos governos em troca de apoio político. Quando os preços do petróleo caem a pique, cria-se um cocktail tóxico: a moeda desvaloriza, a inflação dispara, a dívida também, o comércio externo afunda e o Estado corta na despesa.
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Queda dos preços do petróleo está a afetar as contas da Arábia Saudita. Fotografia: Faisal Al Nasser / Reuters[/caption]
Cortar na despesa significa, desde logo, cancelar encomendas às construtoras. É o caso, precisamente, da Saudi Oger, bem como de outra grande construtora saudita, a BinLadin Group, que, durante seis décadas, foi a empresa de eleição da casa real saudita.
A imprensa internacional já dá conta de episódios em que estas duas empresas são "banidas" de grandes projetos. Há o exemplo da construção de uma rede ferroviária em Riade, capital saudita, que vai ser assegurada por um consórcio de quatro empresas, onde, ao contrário do que seria de esperar, não se encontram nem a BinLadin Group, nem a Saudi Oger.
A Saudi Oger tem ainda alguns projetos ativos, entre os quais um palácio em Jedah, outro em Riade e ainda um em Tanger (Marrocos), mas "as obras estão praticamente paradas devido à crise financeira.
Há quatro anos, a Saudi Oger empregava 56 mil trabalhadores; hoje, são cerca de 24 mil. "Esta semana recebi uma mensagem para informar se quero continuar ao serviço da empresa, para que me seja renovada a autorização de residência assim que o sistema for reposto e a empresa tenha dinheiro para tal, o que não sabemos se e quando irá acontecer. O que quer dizer que a empresa pensa em continuar, talvez com uma dimensão mais pequena", conta um trabalhador.
Até lá, as dívidas acumulam-se e as empresas ficam sem dinheiro para pagar salários, alojamentos, autorizações de residência ou vistos de saída. O Saudi Gazette reporta que a Saudi Oger tem uma dívida de 3 mil milhões de rial (mais de 716 milhões de euros), basicamente em salários em atraso e dívida bancária e a fornecedores.
Esta situação está a afetar, sobretudo, trabalhadores do sul da Ásia, que vivem em campos de trabalho no meio do deserto, contando já várias semanas de salários em atraso. Só da Índia e do Paquistão, há quase 16 mil trabalhadores abandonados nestes campos. No caso dos trabalhadores portugueses, as condições de alojamento são diferentes, mas o cenário é igualmente preocupante.
"Os portugueses vivem em apartamentos que partilham com um ou dois colegas e dividem a renda, que é paga de seis em seis meses. A empresa paga, uma vez por ano, o subsídio correspondente a três meses de salário base. Mas desde outubro que esse subsídio não é pago. No meu caso, em que me devem nove meses de salário e três meses de subsídio, já vão doze meses de salários", explica ao Dinheiro Vivo um destes trabalhadores. "Eu, assim como a maioria, adianto o pagamento e, neste momento, não sabemos se um dia o receberemos". Outros, contudo, "vivem nos campos de trabalho da empresa, onde as condições são muito precárias e onde falta tudo", alerta o mesmo trabalhador. "A alimentação de alguns é muito precária e vão vivendo da solidariedade dos amigos", exemplifica.
A agravar o cenário de precariedade está a impossibilidade de sair do país. Por um lado, a óbvia falta de dinheiro para comprar um bilhete de avião, que custa à volta de 750 euros e "terá de ser pago do próprio bolso". Mas, por outro, há questões burocráticas que se intrometem. Grande parte dos trabalhadores tem a autorização de residência expirada, "porque a empresa não pagou a renovação", que custa cerca de 1100 euros. "Sem autorização de residência, não possível pedir o visto de saída".
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Fotografia: Faisal Al Nasser / Reuters[/caption]
Os vistos podem ser tratados quer pela empresa, quer pelo trabalhador, dependendo do tipo de visto. Se for para saída temporária, pode ser o próprio trabalhador. Se for um visto de saída definitiva, tem de ser a empresa a tratar da questão, "para que tudo o que diz respeito ao trabalhador seja fechado", incluindo contas, créditos ou débitos, alugueres de casa, entre outros. Os trabalhadores poderiam requerer vistos de ausência temporária e não regressar ao país, mas aqueles que têm a autorização de residência expirada não podem fazê-lo – nem sequer a empresa pode, enquanto não tratar da autorização de residência. "Caso tenham dinheiro e condições legais para pedir um visto, qualquer cidadão pode sair do país", esclarece um trabalhador.
E há ainda o dinheiro que lhes é devido. "Ainda temos esperança de receber aquilo que nos devem, cerca de 70 mil euros, e sabemos que, se abandonarmos a empresa e o país, as hipóteses de vir a receber são quase nulas".
O Dinheiro Vivo questionou a Saudi Oger sobre a situação dos trabalhadores portugueses, mas, até ao momento, não obteve resposta.
Ministério dos Negócios Estrangeiros está a acompanhar
Os casos já foram denunciados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), que "tem vindo a acompanhar de muito perto, nomeadamente por meio da Embaixada de Portugal em Riade, a situação em que se encontram os trabalhadores portugueses na Arábia Saudita, assalariados da empresa Saudi Oger".
Contactado pelo Dinheiro Vivo, o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros refere que têm sido feitos "numerosos e firmes contactos políticos, quer junto do Ministério do Trabalho, quer junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino da Arábia Saudita, instando para que seja pago o que é devido aos portugueses que trabalham na referida empresa".
O MNE já tinha dado esta resposta às deputadas comunistas Carla Cruz e Paula Santos, que questionaram o governo sobre a situação dos trabalhadores portugueses.
O MNE refere ainda que o Embaixador português em Riade tem também estado em contacto com o diretor executivo da Saudi Oger, para que os salários em falta sejam pagos, e que o governo português está a trabalhar em conjunto com o MNE francês, "tendo em conta os trabalhadores franceses da mesma empresa, em número muito superior aos portugueses, em iguais dificuldades".
Contactada, a Embaixada portuguesa em Riade remete para o MNE.
Entretanto, acrescenta o MNE, "um decreto do Rei da Arábia Saudita determinou que o ministro do Trabalho desse reino realizasse diligências no sentido do processamento dos salários em atraso".
O Dinheiro Vivo sabe, porém, que este caso está a ser tratado, do lado do governo português, com pinças, temendo-se um conflito diplomático. "Não temos qualquer ascendente sobre a Arábia Saudita e trata-se da Arábia Saudita", explica uma das fontes contactadas pelo Dinheiro Vivo.
"Muitos cometem suicídio"
Há casos ainda mais graves do que o dos trabalhadores da Saudi Oger. São aqueles que vão para a Arábia Saudita sem ligação a qualquer empresa, através de um "patrocinador" individual, a quem pagam antecipadamente, antes de entrarem no país, para, uma vez lá, este patrocinador lhes arranjar emprego.
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Chegado à Arábia Saudita, um trabalhador sem alojamento ficou a dormir numa obra. Fotografia enviada ao Dinheiro Vivo pela noiva desse trabalhador.[/caption]
"O meu noivo foi para a Arábia Saudita com um patrocinador em março deste ano. Ao chegar, começou a trabalhar e, quando acabou o mês, não recebeu o seu salário. Ficou a trabalhar em condições precárias, no segundo mês começou a receber normalmente e, em julho, foi demitido", conta ao Dinheiro Vivo a noiva de um destes trabalhadores, que não é português. "Foi falar com o patrocinador para solicitar o visto de saída e o mesmo exigiu-lhe 4 mil rial [o equivalente a 955 euros]", acrescenta. "Entrou em desespero e até fala em cometer suicídio. Muitos cometem suicídios porque não conseguem voltar para casa".
Sobre este assunto, o MNE português diz desconhecer a situação destes cidadãos estrangeiros e aponta que, "por falta de elementos", não pode "confirmar qualquer situação análoga ocorrida com cidadãos nacionais".
Na prática, os trabalhadores partem para o país já endividados e, uma vez lá, as dívidas acumulam-se, até que se encontram numa situação de escravatura para pagarem as dívidas.
Esta questão do endividamento é transversal a vários trabalhadores, ainda que não assuma esta dimensão tão dramática em todos os casos. "Alguns trabalhadores têm dívidas a entidades bancárias, alguns ao Estado em casos de multas de trânsito, o que bloqueia a emissão de vistos", conta um português. "Vários contraíram empréstimos para a compra de carro e estão em dificuldades para pagar, outros têm prestações vencidas do cartão de crédito. Na Arábia Saudita, o sistema de informação é muito eficiente e centralizado e, se um cidadão deve a um banco, com atraso de várias prestações, essa informação é passada ao sistema e o visto de saída é negado", explica.
Questionado sobre isto, o MNE diz estar confiante "que os recentes progressos indicados anteriormente terão como efeito a superação desse problema por meio da restituição dos montantes em dívida".
Ao que o Dinheiro Vivo apurou, as entidades portuguesas resistem a solucionar as dívidas destes portugueses, já que poderia ser considerado um precedente para outros casos de trabalho precário em outros países.