Ricardo Nunes: "A mudança para o mercado regulado do gás natural pode assumir um volume relevante"

O presidente da associação que representa as comercializadoras de energia admite que pode haver uma debandada do mercado livre. "São os próprios responsáveis políticos a fazer essa publicidade", diz.
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Na resposta à crise energética, o presidente da Associação de Comercializadoras de Energia no Mercado Liberalizado (ACEMEL) considera que "Portugal, ao contrário de outros países europeus, começou a "casa pelo telhado". "Não existe uma solução única e mágica, mas sim, um conjunto de medidas que devem ser aplicadas em simultâneo e com graus diferentes de profundidade", disse Ricardo Nunes em entrevista ao Dinheiro Vivo, realizada antes de serem conhecidas medidas oficiais de apoio às famílias e empresas.

Na semana passada, a EDP e a Galp anunciaram que vão aumentar os preços do gás. A tendência será generalizada nas restantes comercializadoras?
O mercado de gás tem o seu preço definido em índices internacionais, estando os índices mais representativos para o nosso mercado (TTF e MIBGás) em valores absolutamente recorde desde o ano passado. Como referência, o TTF apresentou em julho uma subida de cerca de 525% face ao período homólogo. Se esta tendência se mantiver, como parece ser o caso, mais cedo ou mais tarde, e embora dependa por exemplo das reservas disponíveis ou dos contratos de compra e venda de cada fornecedor, esse aumento será refletido nos preços praticados junto dos consumidores. Claro que o poder político tem sempre à sua disposição "almofadas" orçamentais ou fiscais que pode utilizar para restringir o nível de aumento.


Além de olhar para o mercado grossista, o governo deveria olhar também para a carga fiscal, por exemplo, como tem acontecido em outros países?
A redução da carga fiscal deveria ter sido a primeira medida a ser implementada, e continua a ser decisivo aplicá-la para que consumidores domésticos e empresariais tenham maior alívio nas suas faturas. Neste requisito, apesar de tudo, Espanha tem sido desde o início da crise mais ambiciosa, e ainda recentemente o primeiro-ministro espanhol anunciou a descida do IVA dos produtos energéticos de 21% para 5% para todos os consumidores. Acredito que Portugal vai proximamente anunciar algo semelhante.


Uma das soluções anunciadas pelo governo para mitigar o aumento da fatura do gás natural a pagar pelas famílias foi o regresso ao mercado regulado do gás. Que impacto poderá ter para o setor?
Esta alteração poderá ter um impacto brutal, cujos efeitos poderão sentir-se por vários anos. Naturalmente que as empresas de energia são sensíveis aos momentos extraordinários que vivemos, mas a possibilidade de regresso a um mercado em regime não concorrencial onde, através de uma espécie de "socialização" dos custos, todos contribuem para o benefício de alguns, será sempre uma opção mais penalizadora que outras aplicadas por vários países europeus no combate a esta indesejável crise energética. As empresas fazem investimentos e trabalham para os seus clientes tendo como base um quadro regulatório que permite estimar os seus custos e potenciais retornos. Ao mudar este enquadramento, ao invés de criar medidas mitigadoras no existente, potenciam-se distorções artificiais no mercado que criam riscos adicionais relevantes às diferentes entidades que operam no setor.


As comercializadoras já estão a notar interesse por parte dos clientes em mudar para o mercado regulado? Existe a possibilidade de uma debandada do mercado liberalizado?
Naturalmente. Quando são os próprios responsáveis políticos que fazem essa publicidade, a mudança para o mercado regulado pode assumir um volume relevante. Apesar de, segundo diferentes estudos, a qualidade de serviço, a inovação e o dinamismo ser muito mais efetivo no mercado liberalizado do que no regulado, os consumidores em cenários de incerteza tendem a valorizar mais a componente preço quando se fala de aquisição e contratualização de commodities.


A maioria das empresas vai conseguir acompanhar os preços mais baixos no mercado regulado ou poderá haver mais falências de comercializadoras, como houve por causa da pandemia?
No gás, dificilmente os comercializadores em regime concorrencial conseguirão acompanhar o nível de preço decretado administrativamente para o mercado regulado, uma vez que este não reflete a realidade de preços de mercado em que os comercializadores operam.


O mecanismo ibérico [para desacoplar o preço grossista da eletricidade do custo do gás] suscitou alguma polémica e dúvidas. As faturas da eletricidade vão aumentar ou não por causa deste mecanismo, como foi dito pelo presidente da Endesa, Nuno Ribeiro da Silva?
Não nos compete comentar palavras de outros players do mercado, nem entrar em questões políticas [a Endesa não é associada da ACEMEL]. Contudo, sem entrar numa personalização do tema, devo dizer que a ideia do decoupling do gás é uma boa ideia, e que o preço não aumenta como resultado do mecanismo. Isto é, comparando o preço para um determinado momento com e sem mecanismo, a solução com mecanismo é mais vantajosa em termos de preço de mercado. Mas é também evidente que, se compararmos preços de há um ano com os preços atuais, consideremos ou não o mecanismo, existe um aumento no valor das faturas, mas não estamos a comparar situações de base idênticas, logo, é um raciocínio espúrio. Resumindo, o mecanismo serve apenas como um amortecedor do aumento de preços.


Apesar de criticada por alguns intervenientes do setor em Portugal, outros países da UE estão a estudar implementar modelos semelhantes. Pode concluir-se que este mecanismo foi a melhor solução para mitigar a escalada dos preços da eletricidade ou havia outras formas de apoio melhores?
Infelizmente, nesta crise energética, não existe uma solução única e mágica, mas sim, um conjunto de medidas que devem ser aplicadas em simultâneo e com graus diferentes de profundidade. Portugal, ao contrário de outros países europeus, começou a "casa pelo telhado". Antes de alterar conjunturalmente o mercado, deveríamos ter esgotado todas as ferramentas que tínhamos ao nosso dispor. O mecanismo de decoupling, pelo desenho do mercado regulado em Espanha (tarifa indexada) é mais interessante para Espanha do que para Portugal, já que nós tínhamos, diretamente e através das tarifas de acesso, a possibilidade de amortecer aumentos nas faturas sem necessidade imediata de alterações de mercado. Lembro também que países como Alemanha, França, Reino Unido, entre outros, optaram por, primeiro, descer a carga fiscal sobre produtos e serviços energéticos, depois, por aplicar a alguns setores uma espécie de "cheque energia," onde os Estados contribuem para fazer face ao aumento do custo da energia das famílias e das empresas, e só agora estão a ponderar alterações de mercado. Outra solução que tem de ser equacionada, passa pela eficiência energética e redução de consumo, onde aliás se conhecem já muitas medidas de diferentes países europeus. Alterar os mercados de forma isolada traz riscos reputacionais que dificultarão o normal funcionamento dos mercados quando esta crise for ultrapassada.


Uma das soluções que tem sido discutida para a atual crise energética passa pela alteração do design do mercado. A Comissão Europeia tem-se oposto à alteração do modelo de mercado, mas esta semana Ursula Von der Leyen admitiu ajustamentos e revelou que Bruxelas está a preparar uma intervenção de emergência no mercado de eletricidade. É uma boa notícia para o mercado português e para a economia?
Depois das desastrosas políticas de energia da União Europeia nas últimas décadas, o carimbo de política europeia nestas questões não traz muita confiança aos diferentes atores do setor. O problema de uma intromissão europeia nos mercados é similar ao que aconteceu na Península Ibérica, com os mesmos efeitos secundários, só que neste caso macro. É importante referir que EUA e Japão, entre muitos outros países desenvolvidos, vão manter os seus modelos de mercado, pelo que estas exceções e alterações no modelo de mercados europeu contribuirão para um maior isolamento do nosso continente, especialmente relevante no setor da energia, que é por definição global.


Estas mexidas no design do mercado poderão comprometer a capacidade de investimento em renováveis?
Sim. O mercado marginalista com todos os seus defeitos, define a remuneração das tecnologias mais baratas (tipicamente renováveis) com o preço da última e mais cara tecnologia considerada. Dependendo do modelo escolhido, o preço poderá ser menos interessante para as tecnologias renováveis. A ideia de que é possível uma transição com a magnitude da energética, sem custos para as pessoas e para as empresas é, no mínimo, naive [ingénua].


No momento em que a Europa procura reduzir a sua dependência energética da Rússia, qual o papel que Portugal pode ter para ajudar a alcançar esse objetivo? Acredita que Portugal poderá reexportar gás para a Europa, apesar da resistência francesa ao gasoduto Midcat?
É fundamental o desenvolvimento de interligações gasistas e elétricas entre a Península Ibérica e o resto da Europa. No caso do gás, além de podermos exportar o gás que recebemos de África ou dos EUA, essa mudança permitirá, uma vez que várias das inovações tecnológicas em curso sejam globalmente adotadas, a sua utilização também para o transporte e exportação de hidrogénio ou de outros gases renováveis. No caso da eletricidade, é ainda mais decisivo para Portugal e Espanha pois, além de nos possibilitar acesso a um mix energético mais rico e diversificado, permitirá que, em períodos de excesso de produção renovável possamos exportar, e importar de outros países, nomeadamente nuclear, nas horas onde as renováveis, pela sua variabilidade, ainda não conseguem ser eficazes.


Sines poderá mesmo ter uma importância estratégica para a Europa ou é uma gota no oceano no objetivo da Europa encontrar alternativas ao gás russo?
Sines terá muita importância para Portugal e para a Europa, mas será necessário muito mais do que representa Sines para a Europa atingir a ambicionada independência energética da Rússia. Estamos perante uma crise energética, seguida de uma guerra energética, e as soluções devem ser combinadas com critério técnico, sem ideologias ou estados de alma. Deve atacar-se o problema do lado da oferta, mas também da procura, no curto mas também no longo prazo. Como temos afirmado, a transição energética é fundamental e inegociável, mas o ritmo e a forma como é feita conta muito para chegarmos todos (famílias e empresas europeias) em boas condições a 2050.


Em Portugal, sempre demos a eletricidade e o gás como garantidos. Temos condições para continuarmos confiantes de que não haverá problemas de abastecimento?
Esta crise tem atingido proporções que poucos antecipavam há alguns meses. Quando se pensa que se atingiu o ponto mais negativo, sempre aparecem outros fatores que ainda penalizam mais o setor em toda a Europa. Hoje, com os níveis de reservas que temos, e até pelas boas interligações com Espanha, parece-me muito difícil que venhamos a ter problemas de abastecimento no gás e na eletricidade, mas se tivermos um inverno sem pluviosidade ou se, por exemplo, os contratos de gás começarem a ser incumpridos por alguns produtores que preferem vender a países que lhes oferecem melhores contrapartidas financeiras e não financeiras, todo este otimismo pode alterar-se.


Face às metas impostas por Bruxelas, Portugal vai apresentar um plano de poupança energia. O que esperam deste plano?
Os planos de poupança de energia são uma arma decisiva para enfrentarmos a guerra energética em que estamos envolvidos. Não será preciso uma grande criatividade, basta adaptar planos de outros países europeus às particularidades que a nossa cultura e clima exige. Numa primeira fase poderão ser importantes medidas como: supressão da iluminação em edifícios públicos, museus e monumentos a partir de certa hora, proibição de iluminação nas montras de espaços comerciais à noite, redução no funcionamento de algumas indústrias não produtivas, restrições de climatização e aquecimento em alguns espaços, entre muitas outras. Dependendo da duração e intensidade da crise energética poderemos ser obrigados a condicionar alguma atividade económica e industrial.


Tendo em conta todas estas situações que foram abordadas, a conta da eletricidade dos portugueses vai aumentar?
Com os preços internacionais dos vários produtos que influenciam o preço da eletricidade, assim como das licenças de CO2, em valores recorde, as renovações de contratos deverão ter a componente de energia mais elevada. No entanto, sendo o mercado de eletricidade bastante mais desenvolvido que o de gás, existirão ofertas complexas ou diferentes que poderão limitar esse aumento.

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