Não é possível resolver a falta de casas no país num ciclo político, diz Ricardo Sousa, CEO da Century 21 Portugal, em entrevista ao Dinheiro Vivo. Para o especialista do setor imobiliário, o problema da habitação exige uma solução eficiente de mobilidade urbana que permita aproximar as casas de 200 mil euros dos locais de trabalho. Essa ineficiência nas grandes áreas urbanas afasta os jovens do mercado.No espaço de dois anos, foram lançados dois programas para mitigar a crise habitacional do país: o Mais Habitação e o Construir Portugal. Até agora, nenhum teve efeitos concretos no aumento da oferta e na descida do preço. Porquê?As medidas estão muito centradas em soluções de curto prazo. Este tema é um desafio que vai para além da habitação e que necessita de uma visão mais integrada, mais estratégica e de longo prazo.A habitação não devia fazer parte da narrativa política ou do debate político ou, vamos chamar-lhe, de instrumento de política, mas devia ser um pacto de Estado. É um bem de primeira necessidade, que vai muito além dos ciclos políticos. Este problema não se resolve num ciclo político. Se continuarmos a ter uma abordagem centrada em soluções de curto prazo, direcionadas na maior parte delas para o lado da procura, o problema não se resolve. Nós temos um problema estrutural. Temos uma realidade demográfica de concentração de pessoas em determinados pontos do território, principalmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas também no Algarve, em Braga, Leiria.Temos uma oferta que está distribuída pelo território, mas uma concentração de procura em determinados pontos. Dentro das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, e no Algarve, há oferta disponível a valores que as pessoas podem aceder. E qual é o desafio que encontramos? Muita desta oferta está situada em zonas onde a mobilidade urbana é deficiente ou inexistente. O que devíamos estar a discutir seria mais investimento para modernizar e aumentar a frequência das nossas redes de ferrovia, de metro, as ligações intermodais que ligam o barco, o comboio, o metro e os autocarros. Todas estas dinâmicas iriam criar soluções de acesso à habitação e aproximar a casa das pessoas do sítio onde trabalham.E isto leva-nos a um ponto que, na nossa opinião, podia ser central no debate político, que tem a ver com a revisão dos planos diretores municipais, e não numa lógica da cidade, mas de área metropolitana. Antes de chegarmos à reclassificação dos solos, o importante é olharmos para aquilo que já é solo urbano e como é que podemos repensar este planeamento urbanístico numa lógica metropolitana.Não há outra forma de resolver sem ser melhorando a mobilidade urbana, e melhorando aquilo que se pode construir e onde se pode construir, nomeadamente a densidade urbana.O que é que efetivamente foi conseguido até ao momento?É ingrato para o poder político que fez este trabalho mas, neste momento, o impacto é praticamente nulo. Os números mostram isso. Os problemas mantêm-se, porque o problema de fundo não foi atacado. No governo anterior houve medidas para incentivar alguma oferta para um mercado de arrendamento acessível, mas o impacto não foi o desejado. Temos agora o apoio aos jovens.Esses apoios aos jovens - isenções fiscais e garantia pública nos empréstimos - são a resposta adequada? Permitem-lhes aceder ao mercado?Os principais obstáculos são os baixos rendimentos disponíveis e a precariedade laboral, porque com estes dois problemas, com ou sem garantia pública, com ou sem impostos, não conseguem aceder. Nenhum banco financia quem não tem um contrato de trabalho e não cumpre com os requisitos de taxa de esforço. Devem ser pensadas soluções de incentivo às empresas na contratação dos jovens, de valorização da força laboral.Para um jovem que já ía comprar casa, as medidas de isenção do IMT, do imposto de selo e emolumentos são uma poupança. É uma ajuda importante no processo de independênciaA garantia pública é, de facto, um pouco inócua da forma como hoje está estruturada. Eu posso passar de um financiamento de 80% para 100%, mas isso vai implicar que a prestação mensal aumente, porque estou a pedir mais dinheiro ao banco. Logo, vai ter um impacto na minha taxa de esforço e vamos tirar mais pessoas da equação. Mais do que facilitar ou trazer mais pessoas ao mercado, o que estas medidas permitem é uma maior poupança àqueles que já iam aceder. Uma grande parte dos jovens que não conseguia aceder, vai continuar a não conseguir, mesmo com estas medidas, e isso é uma realidade.Na Century 21, sentiram um aumento de transações por parte dos jovens incentivado por estes benefícios?Não, de todo. Quando as medidas foram anunciadas tivemos muitos pedidos de informação. Quem podia comprar, comprou, e quem não podia comprar, continua a não poder. No verão, muitos jovens adiaram a decisão à espera de poder ter os 100%, mas foi um adiamento. Naquilo que é o essencial, que é o acesso à habitação, não teve impacto. Preferíamos muito mais ver a infraestrutura de metro e ferrovia melhorada e reforçada na Área Metropolitana de Lisboa. Iria ajudar muito mais jovens a ter casas abaixo de 200 mil euros. Há muitas.Melhorar a mobilidade urbana também não se faz de um dia para o outro.Tem de haver uma vontade política de planear e fazer algo que vai além de um ciclo ou dois ciclos políticos. As medidas de curto prazo deviam ser bem segmentadas, para as pessoas que realmente precisam. E afastar-nos de medidas generalistas, como muitas das que temos atualmente, que acabam por ser um incentivo à procura, ter um impacto em partes da população que nem são as que mais necessitam. No curto prazo, devemos dar prioridade à oferta de habitação pública, que é tão necessária nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. É aí que devia estar o foco no curto prazo, porque a base do problema resolve-se de forma estrutural, com planeamento a médio e longo prazo.A nova lei dos solos tem estado na ordem do dia e não por boas razões. Qual é a sua opinião?Nós defendemos uma revisão do planeamento urbanístico e isso, obviamente, é tocar na lei dos solos. Há, de facto, partes do território que necessitam dessa revisão. Na nossa opinião, não devia ser algo genérico para todo o território. Nós estamos em Oeiras. É um território que sofre dessa limitação e que esta situação vai resolver. Na nossa opinião, a reclassificação dos solos necessita de um consenso metropolitano, não deve ser feita numa lógica só municipal.A lei dos solos fala em habitação a “valores moderados”. Foram levantadas várias dúvidas sobre essa acessibilidade de preço. O que pensa?Também concordamos. O decreto-lei deve ser revisto agora ou na especialidade. O preço dos solos, pelo menos numa primeira fase, também deverá aumentar. O valor de um terreno que era rural, só dava para cultivar, e onde vai ser possível construir imóveis, muda naturalmente. O proprietário vai querer ser compensado.Neste contexto de escassez de oferta, como irão evoluir os preços em 2025?Nós identificámos quatro drivers que vão continuar a pôr muita pressão na procura: temos uma população ativa em níveis recorde, por este lado vemos que há uma dinâmica muito interessante do lado da procura; as taxas de juros vão estabilizar e descer de uma forma mais moderada, o que também incentiva a procura; temos também a procura internacional muito forte; mas o ritmo de construção não está a acompanhar as necessidades. Continuará a existir um gap entre a oferta e a procura.A concentração urbana e as limitações que temos de mobilidade urbana vão continuar a pôr pressão nos mesmos sítios e não estão a abrir outros mercados na periferia.É inevitável que em 2025 a realidade dos preços não se altere drasticamente. Há uma limitação natural, o rendimento das pessoas não é elástico, logo isso vai condicionar a procura. As pessoas já estão a abdicar de critérios de pesquisa das casas: da zona, do tamanho da casa, não da tipologia porque é mais difícil, mas mesmo assim nós passámos da tipologia mais procurada historicamente, que era o T3 para T2. As pessoas estão a racionalizar a sua escolha e isso obviamente vai marcar o ano 2025. Estas tipologias, que já estavam com os valores altos, vão sofrer pressão. Um T2 de 80 metros quadrados numa zona mais periférica vai ver o seu valor aumentar.Porque é que em Portugal o mercado de arrendamento é quase inexistente? Fala-se muito em projetos build-to-rent, mas nada aparece...Uma parte importante das transações da Century 21 são de arrendamento. Temos clientes que compram para colocar no mercado de arrendamento. Nós temos mercado de arrendamento e se calhar maior do que podemos perceber pelos números. A questão é a informalidade e a falta de fiscalização. Não há nenhum registo das casas e quartos que estão arrendados. É muito na base de arrendar ao amigo, à filha do amigo. E temos uma instabilidade legislativa, regulatória, tanto legal como fiscal, que afasta os pequenos e grandes proprietários do mercado formal. Sobretudo afasta a chegada de projetos, que na nossa opinião eram muito necessários, de build-to-rent. Construir de raiz uma oferta para o mercado de arrendamento. As casas que temos hoje não estão pensadas para esse mercado. O arrendamento é para a maioria das pessoas uma solução de transição. São necessárias casas mais pequenas, menos tipologias, se calhar serviços associados ou condomínios partilhados. Essa construção de raiz para o mercado de arrendamento é fundamental. Podiam ser criados acordos de investimento com o EstadoA Covid foi um bom exemplo da informalidade do mercado. Porque é que tantas pessoas ficaram de fora nos apoios que houve para o arrendamento? Não tinham contrato. Vamos aos portais imobiliários e vemos uma oferta gigante de imóveis e desaparecem. Só sabemos que deixaram de estar publicados. No ano passado, a Century 21 assistiu a um grande crescimento das transações de clientes provenientes dos EUA. Foi o efeito Trump?Não, esta dinâmica já existia antes das eleições. Já estamos a verificar esta tendência há aproximadamente três anos. Os norte-americanos têm questões internas importantes, ao nível da segurança, do custo da saúde e dos seguros e alguns Estados, nomeadamente a Califórnia, têm prevista uma subida dos impostos. Estas questões internas provocam uma procura de alternativas para viver. Ser proprietário em Portugal é muito mais barato do que nos EUA. Portugal é um destino que ganhou popularidade e foi reconhecido.