A polícia ainda investiga mas os donos dos quiosques não têm
dúvidas: os assaltantes não queriam vender os jornais a preços
mais altos em bancas alternativas; muito menos saber das notícias
antes do leitor comum. Não, o que os motivou foram as "figurinhas"
- ou os "cromos da bola", como se diz em Portugal - que
viajavam em caixotes juntamente com os diários. "Quando vou para
casa à noite fecho o meu quiosque e deixo todos os jornais e
revistas dentro, não faço caso, mas levo para casa as figurinhas da
Copa, é o que tem mais valor real e potencial", diz um
comerciante.
Cada caixote completo (contém dezenas de caixas, milhares de
saquetas e dezenas de milhares de cromos) vale mais de 300 euros no
início da coleção - mas à medida que o Mundial de aproxima, o
valor da figurinha cresce. Basta passar pelos quiosques de todo o
país aos domingos para entender: centenas de milhares de brasileiros
trazem mesas e cadeiras de casa, trocam avidamente os repetidos entre
si e riscam a lista dos que faltam ao mesmo tempo que estabelecem
valores cada vez mais elevados pelos cromos mais difíceis, como o
raríssimo número 524, o Hélder Postiga.
Ninguém escapa à febre. "Eu e o meu neto passamos horas no
final-de-semana trocando figurinhas, é divertido e ajuda a relaxar",
disse em entrevista uma avó com ares de viciada. O neto em causa
chama-se Gabriel e a avó Dilma. Dilma Rousseff.
A Panini, a empresa italiana que opera há mais de meio século e
é líder do segmento das coleções de cromos, quando lançou o
álbum do Mundial brasileiro algures em Fevereiro, estimava faturar
mais de 500 milhões de euros, à conta dos mais de oito milhões de
colecionadores no país (quase um Portugal inteiro). Um lucro que já
descontava os pesados investimentos da Panini no Brasil: número de
funcionários quadruplicado, perto de um milhão de euros em novas
máquinas de impressão locais e seis milhões de euros investidos em
marketing - Neymar, uma espécie de CR7 à brasileira nos relvados
e nos anúncios, foi, como seria inevitável, o escolhido para
"garoto propaganda".
Os donos de quiosques vão faturando na mesma proporção da
empresa italiana. "É o nosso milagre da multiplicação dos pães,
faz-nos ganhar o triplo", dizia um vendedor ouvido pela revista
Época numa banca da zona sul de São Paulo comparando os números
dos Maios de 2014 e de 2013. Ele, como muitos outros, tem uma
inscrição à frente da sua banca de jornais a dizer "temos
figurinhas", uma inscrição que se repete a cada 50 metros
percorridos no centro da cidade, mais ou menos a mesma frequência
com que em Lisboa por esta altura se lê a cada tasca "temos
caracóis".
Naquela manhã, o "Estadão" e a "Folha" traziam notícias
sobre a caótica greve dos motoristas de autocarros em São Paulo. O
ministro das finanças assegurava que a inflação estava controlada.
A oposição garantia o inverso. Havia interessantes dossiês sobre
as eleições na emergente Colômbia. Mas, na verdade, o que mais
preocupou a rica e informada população do norte do estado de São
Paulo foi mais uma semana sem o Hélder Postiga, cujo valor no
mercado não para de subir - o valor da sua figurinha, claro.
Jornalista
Escreve à quarta-feira
Crónicas de um português emigrado no Brasil