"Estamos atualmente, pelo menos para nós, Conselho Único de Resolução (CUR ou SRB -Single Resolution Board, em inglês), numa situação de incerteza sem precedentes. Estamos a sair da pandemia. Temos de enfrentar a crise geopolítica e a guerra na Ucrânia", concede Elke König, a presidente da entidade que gere, avalia e resolve situações limite nos bancos europeus (com ramificações transfronteiriças relevantes dentro no perímetro dos 19 países da zona euro, mais Croácia e Bulgária).
Ao Dinheiro Vivo, numa entrevista conjunta com Luís Máximo dos Santos, vice-governador do Banco de Portugal e presidente do Fundo de Resolução português, König diz que o sistema europeu de resolução, em articulação com "mais 21 países", está preparado para agir do mais suave ao pior cenário; se um banco falhar e precisar de amparo, por exemplo. Mas faltam bases para o futuro "incerto", se este for menos ameno.
O vice-governador, interlocutor direto de Portugal no SRB, convidou os pares para uma reunião em Lisboa, no Banco de Portugal, a 1 de julho último. Os dois altos responsáveis pela resolução de bancos (Máximo dos Santos e König) não estão sozinhos no apelo ao aprofundamento da união bancária.
Klaus Regling, o diretor-geral do Mecanismo de Estabilidade Europeu (o ESM, que quer ser, com propriedade, o fundo de resgate europeu para o que der e vier nos soberanos) há anos que defende uma ampliação do poder de fogo na parte dos bancos. Um fundo de suporte (backstop) para o Fundo Único de Resolução, que já existe, funciona, mas que sem essa segurança adicional pode não ser suficiente num cenário mais severo.
König e Máximo dos Santos dizem que não menos importante é estabelecer um fundo comum de seguro ou garantia de depósitos, que, entenda-se, poderá ser uma base crucial para uma linguagem comum e única.
Com os aforradores, depositantes, não se deve brincar, por assim dizer: quem poupa é o garante do sistema, a base primordial de fundos, e acima de tudo, a pedra angular da confiança nos bancos - o mais valioso ativo de todos.
Até hoje, quase todas as ajudas aos bancos evidenciam que a confiança não tem preço. Em Portugal, o custo a pagar por essa estabilidade é bem conhecido. É bastante elevado, tendo em conta o tamanho da economia.
Apesar das vontades políticas expressas e vocais, de Mário Centeno a Paschal Donohoe, antigo e atual presidente do Eurogrupo, respetivamente, o avanço não foi suficiente. O fundo de não existe, a harmonização dos regimes de resoluções continua a ser um puzzle intrincado porque as leis e os regulamentos diferem de país para país. Às vezes diferem muito.
O caso do Sberbank, incrustado na Eslovénia e na Croácia, baseado na Áustria, foi um desafio sério em fevereiro e março. A marca é (era?) o maior banco da Rússia.
A 27 de fevereiro, três dias depois de a Rússia invadir a Ucrânia, o CUR revelou que as operações do banco falhavam na Eslovénia (zona euro) e na Croácia (vai aderir ao euro em 2023). E o braço europeu sediado na Áustria faliu com uma corrida aos depósitos logo a seguir ao início da guerra.
Falando da Áustria. König dá um exemplo que, para si, pode ser de ultraproximidade por ser alemã e a sua carreira estar profundamente ligada ao maior país e fundador da zona euro. Mas, na resolução, não era bem assim.
"Grande parte do nosso trabalho é assegurar que conhecemos muito bem os sistemas, o direito das sociedades e afins, pensei que os austríacos, falando alemão, teriam um sistema similar. No Sberbank, percebemos que têm um sistema de insolvências totalmente diferente", observa a dirigente do organismo europeu. Foi inesperado, mas resolveu-se.
Até agora, a rede de resolução funcionou nos casos de perfil europeu do Sberbank e do Banco Popular. E se vier uma crise maior?
Como referido, König é alemã e, claro, não está com grandes rodeios: falta terminar a união bancária, um fundo de garantia de depósitos comum, um instrumento de proteção e garantia (backstop) do fundo dedicado do ESM. No fundo, um sinal inequívoco de que estamos todos no mesmo barco.
Quanto à crise... Para já, não se trabalha em tal cenário, mas a antiga presidente da Autoridade Federal de Supervisão Financeira da Alemanha (nos anos de chumbo de 2012 a 2015) sinaliza que "se sente uma situação de incerteza sem precedentes", para mais "quando estamos a sair da pandemia" e temos de enfrentar agora um cenário de guerra. "Portanto, olhando para o sistema bancário, temos de ver isso", atira König.
Ou seja, se com a tensão atual se está a formar uma nova crise ou não, "se haverá mais stresse para o sistema bancário", não se sabe. Mas "como mecanismo de resolução estamos a observar atentamente para podermos reagir, é para isto que temos trabalhado".
Em todo o caso, o sistema de resolução de bancos a nível europeu (quando as instituições têm relevância transfronteiriça) está montado, ativo e já aplicou duas medidas de resolução (uma em 2017 e outra este ano, ver abaixo).
König recorda que, "em 2020, estávamos muito preocupados que a situação da pandemia pudesse colocar os bancos sob forte pressão, o que não aconteceu".
"Não aconteceu em nenhum dos países europeus porque, obviamente, houve uma resposta orçamental muito boa dos Estados-membros e de política monetária por parte do Banco Central Europeu", acrescenta.
Durante a pandemia, "os bancos resistiram bem, sobretudo porque nos anos anteriores houve mais acumulação de capital" por imposição de regras regulatórias mais exigentes. "Se tivéssemos entrado na pandemia com o sistema bancário de 2007/2008 teria sido uma história totalmente diferente".
Mas não foi. E para a presidente, hoje, "os bancos são mesmo parte da solução".
De outro modo, quando olhamos para a exposição à Rússia, "quando falamos de bancos, basicamente, a exposição da zona euro é muito limitada", diz a dirigente do conselho. Claro que "há bancos com exposições de dimensão considerável à Rússia, mas mesmo nesses casos, a situação é totalmente controlável".
No entanto, a guerra impôs aos europeus um novo quadro. Temos mais inflação, "os preços da energia dispararam" e isto "em cima das tensões que já existiam nas cadeias de abastecimento".
Agora devemos "pensar sobre qual será o efeito de segunda ordem nas famílias e nas empresas". "Penso que é justo dizer que a fatura energética vai trazer mais exigências às famílias e à indústria em geral, é o tipo de incerteza que teremos de avaliar".
Além disso, temos de ver o que vai ser a reação dos bancos centrais à subida da inflação, quão rápido e longe irão no aumento das taxas de juro. "Portanto, é um cocktail do qual não temos a certeza se iremos gostar no final", observa.
Com duas medidas de resolução já aplicadas desde 2017 e várias medidas de reorganização de bancos (sem ser de resolução, ou seja, de venda de instituições e declarações de insolvência) tomadas até agora, Elke König garante que, na Europa, "estamos bem preparados" para lidar com novas realidades que se venham a impor ao sistema financeiro e bancário.
Mas, claro, sem união bancária é preciso "diálogo permanente" com as autoridades nacionais, recorda a mesma dirigente. "Continuamos a precisar de saber como funcionam as regras de resolução em 21 países diferentes" porque essas regras diferem.
Portugal foi um dos primeiros países a aplicar medidas de resolução, ainda a diretiva europeia não existia. "Havia apenas uma proposta de diretiva", mas na altura decidiu-se avançar com o novo modelo, explica o vice-governador do BdP, Luís Máximo dos Santos.
Questionada sobre se a experiência portuguesa (começou com o BES no verão de 2014) tornou o modelo nacional um exemplo mais ágil e melhor do que outros na Europa, König solta um riso. "Não comento! Não vou dar notas aos sistemas existentes."
Na entrevista, o vice-governador lembra uma letra de José Mário Branco. Isto é um pouco como se diz na canção: "o que eu andei para aqui chegar". "De facto, é absolutamente extraordinário como é que na União Europeia se começou a delinear a união bancária em 2012, com uma primeira aprovação política, mas depois os instrumentos regulatórios foram sendo criados e só, na verdade, a 1 de janeiro de 2016 é que o mecanismo de resolução começou a funcionar".
Para Máximo dos Santos, a caminhada parece mais longa porque, explica, "a resolução, contrariamente à supervisão, que já estava estabelecida há imenso tempo, não era um instrumento tradicional de os países lidarem com as crises bancárias". "Havia experiências nos Estados Unidos, num ou noutro país, mas toda esta arquitetura com esta conceção regulamentar, com este formato, só se generalizou na Europa e veio para ficar em 2016".
Antes da resolução, até à crise bancária e ao caso BPN, por exemplo, o que estava previsto na lei eram pura e simplesmente nacionalizações. "No fundo, ou o banco era liquidado ou era nacionalizado ou havia um concorrente forte no mercado que o comprava."
Questionado sobre o balanço que já pode ser feito da resolução mais antiga, a do BES/Novo Banco, e sobre as exigências de verbas que o acionista (Novo Banco/Lone Star) continua a fazer ao Fundo de Resolução, Máximo dos Santos declina uma resposta. "Não quero vampirizar esta conversa" falando sobre o Novo Banco, atirou.