Ela não piscava os olhos. Este pormenor, apontado pela recepcionista da empresa, torna-se impossível de ignorar à medida que o puzzle é montado à nossa frente. Ela não piscava os olhos como uma pessoa normal, repete o engenheiro Dave Philippides. A voz grave, o eyeliner preto, os olhos azuis que raramente piscam, a roupa sempre preta e a perene gola alta – ela não era uma pessoa normal. Durante duas horas, submergimos no mundo de mentiras fantásticas da mulher que um dia foi apontada como próximo Steve Jobs. A lente de Alex Gibney, o mesmo realizador que revelou o lado negro da Cientologia, mostra-nos que Elizabeth Holmes não era uma pessoa normal; ela era, ela foi, uma das maiores fraudes de sempre em Silicon Valley.
“The Inventor - Out for Blood in Silicon Valley” é o documentário que conta a história desta empreendedora caída em desgraça, que antes do rebentar do escândalo era realeza na bolha do vale. O filme estreou ontem na HBO e faz um retrato cru e pungente da visionária que não o era; mostra também como o mote oficioso do vale do silício, “move-te rapidamente e parte coisas”, contribuiu para este cambalacho de proporções dantescas. Já é mau que os Zuckerbergs do vale joguem com a privacidade dos utilizadores como se fossem cartas do monopólio; mas Elizabeth Holmes quis jogar com algo que vai para lá de todas as barreiras homem-máquina.
A sua empresa, Theranos, ia revolucionar os testes de laboratório. Em vez de ser necessário enfrentar a agulha e tirar um ou mais tubos de sangue mediante prescrição médica, os pacientes poderiam pedir os seus próprios exames e fazê-los em farmácias. A ideia era incrível: uma caixa preta mais pequena que uma impressora empresarial teria a capacidade de fazer mais de 200 testes de laboratório diferentes a partir de umas gotas de sangue, tiradas com picada no dedo e depositadas num nanotubo. Os preços seriam uma fracção do custo de exames em laboratório. A longo prazo, seria possível comprar uma destas caixas para ter em casa, da mesma forma que os computadores passaram de mainframes do tamanho de uma sala a pequenos dispositivos em cima da secretária. A visão era extraordinária. Só havia um problema: não era possível.
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“The Inventor” conta como Elizabeth Holmes se deixou ultrapassar pela sua imaginação e passou a viver fora da realidade. Ela queria criar a Apple dos testes de laboratório. Ela queria ser o novo Steve Jobs (até a gola alta preta era parecida). Mas aquilo que foi buscar ao co-fundador da Apple não foi apenas a resiliência e perseverança; foi também o campo de distorção da realidade que o tornou um patrão terrível mas ajudou a originar o iPhone, e nela deu em acusações criminais que poderão atirá-la para a cadeia durante vinte anos.
Holmes foi ao mesmo tempo vítima e perpetradora. Movendo-se entre a nata de Silicon Valley, ela interiorizou o comportamento que grassa neste vale da Califórnia: fingir até conseguir, mentir para arrancar dinheiro a investidores, falhar e omitir, passar por cima de tudo e todos em prol de uma missão final.
O economista comportamental Dan Ariely aludiu a esse efeito ilusório que leva a dobrar as regras para chegar àquilo que se acredita ser uma boa causa. É impossível ver este documentário e não pensar nos atropelos de tantos outros “visionários” do vale; a diferença é que isto não era uma aplicação para pôr filtros nas fotos ou partilhar emojis animados. Holmes quis revolucionar um campo em que mau comportamento é a diferença entre a vida e a morte dos pacientes.
No auge, a Theranos levantou 400 milhões de dólares e ultrapassou uma avaliação de 9 mil milhões. É extraordinário ver o quão longe conseguiram ir antes de tudo implodir, graças à coragem de um jornalista de investigação do Wall Street Journal e de ex-empregados que não ficaram calados. A empresa fechou contrato com a cadeia de farmácias Walgreens para fazer testes de sangue aos pacientes sem que a sua máquina conseguisse realmente dar resultados fiáveis. Porque aquilo que Holmes queria não era só miniaturizar a maquinaria complexa (e pesada) usada em laboratórios; era também reduzir a amostra para quantidades muito baixas, um ponto a que a ciência ainda não chegou.
Há outras questões a colocar, tais como os perigos do auto-diagnóstico e a tendência de muita gente de se consultar com o “dr. Google” em vez de ir ao médico a sério. Não há dúvidas de que o duopólio dos testes de laboratório nos Estados Unidos merecia disrupção – mas há um motivo pelo qual é tão difícil conseguir autorizações dos reguladores, ensaios clínicos e patentes farmacêuticas. É um campo monstruoso. Esta mulher cativante e persuasiva, que largou a universidade de Stanford aos 19 anos tal como tantos outros mitos de Silicon Valley, julgou que seria David contra Golias. Afinal, foi um rato que deixou buracos na montanha.