"Se não houver uma hecatombe, Portugal consegue reduzir a dívida para 60%"

Entrevista a Rui Baleiras, coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), a equipa de seis peritos que ajuda os 230 deputados do Parlamento a descodificar os assuntos orçamentais do País.
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Rui Nuno Baleiras nasceu em 1963 e é doutorado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa. Foi secretário de Estado do Desenvolvimento Regional no primeiro governo liderado por José Sócrates, entre 2005 e 2009. Coordenou a estratégia de utilização do quadro de fundos europeu QREN, avaliado em 21.500 milhões de euros, e a implementação do seu modelo de governação.

Juntamente com a economista Teodora Cardoso, foi cofundador do Conselho das Finanças Públicas. Desde 2018 que é coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), a equipa de seis técnicos que faz consultoria especial para o Parlamento português em matérias de Orçamento do Estado e contas públicas. É um dos maiores especialistas do País em finanças públicas locais, tendo publicado vários trabalhos sobre o tema.

Nesta entrevista "A Vida do Dinheiro", ao Dinheiro Vivo e à TSF, fala sobre dossiês difíceis, como o Novo Banco, e sobre o que se espera nas contas públicas dos próximos anos, que vão ser fortemente marcados pelo Programa de Recuperação e pelo regresso do Pacto de Estabilidade e da consolidação orçamental. Parte 4 de 4.

O ministro das Finanças afirmou que a política monetária do BCE está esgotada. Portugal consegue viver sem essa rede de segurança?

Na política raramente há situações de sim ou não, de branco ou preto, e quando essa questão se colocar, e o BCE tem em revisão a sua estratégia de médio prazo da política monetária, naturalmente que terão de ser encontradas soluções progressivas. Agora, há um facto, nós cidadãos apercebemo-nos que é um pouco anormal vivermos tantos anos com taxas de juro zero. Porque, veja, como é que se incentiva as pessoas a poupar? A constituir almofadas enquanto os seus rendimentos excedem as necessidades de consumo para pagar despesas de investimento?

Ou como é que se justifica perante os pensionistas, por exemplo, que têm as suas pensões indexadas.

Exatamente. Portanto, isto é uma anormalidade do ponto de vista económico, um dia tem que ter uma solução. Agora, a verdade é que há uma grande diferença na capacidade que os Estados têm tido para lidar com esta crise pandémica daquela que tiveram com a crise das dívidas soberanas. E esse é o enquadramento da política monetária europeia.

O Pacto de Estabilidade está suspenso por causa da pandemia até 2023. Ele deveria ser reformado até essa data? Ou, de outra forma, quando o Pacto regressar deveria ser igual ao que é?

Acho que as regras de disciplina, as regras que, no fundo, limitam a discricionariedade das autoridades orçamentais nacionais, devem ser revisitadas e sei que estão atrás das cortinas, neste momento, a ser discutidas, no plano técnico e, porventura, já terá havido conversas informais entre ministros das Finanças. Seria altamente desejável para todos que o novo quadro de regras de disciplina orçamental estivesse pronto e fosse conhecido de todos antes de a Comissão Europeia levantar a cláusula de derrogação geral do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que poderá acontecer em 2023.

Que avaliação faz das duas regras básicas do Pacto? Faz sentido o teto de 3% do PIB para o défice e o ajustamento da dívida excessiva até 60%?

Com os critérios de ajustamento progressivo que temos, essas regras têm-se mostrado exequíveis. Mesmo no caso de Portugal, nós estávamos a cumprir, estamos com a dívida acima dos 60%, mas estamos comprometidos porque não são apenas essas regras.

Há o ajustamento estrutural.

O estrutural e no caso da dívida o decréscimo de um vigésimo da dívida que está acima dos 60%. Portanto, no nosso caso, agora estamos com 70 e tal pontos percentuais acima dos 60% do PIB. Temos de reduzir isso, digamos, 5% por ano. Se não houver uma hecatombe, se o BCE não mudar a sua orientação de um dia para o outro, é exequível. Agora, onde está o problema? Está é nas regras indexadas ao produto potencial, porque não é uma variável observável e isso gera muito atrito.

Deveria deixar-se cair esse tipo de métricas artificiais, opacas?

Sim. A própria regra da despesa baseada no produto potencial tem a ver com o saldo estrutural, isso deveria ser realmente revisto.

Quantos técnicos têm e que dificuldades sentem no vosso trabalho?

Tenho cinco analistas, e eu também, que também faço análise, e tenho este número de pessoas desde que cheguei, em 2018.

Como é que isso compara com congéneres da UTAO?

Muito mal. Por exemplo, com a Irlanda, que é um país mais pequeno do que Portugal, eles terão uns 15 economistas. Já para não falar na nossa organização congénere maior do mundo, que funciona no congresso do Estados Unidos da América que só doutorados em economia são mais de 200 e depois têm doutorados em imensas áreas de engenharias e outras áreas, porque eles fazem um trabalho que nós também fazemos numa outra escala e com outros recursos, que é o chamado custeio das medidas de política. Nos parlamentos, como o português, somos muito prolixos a legislar. Quase todos os dias, atrevo-me a dizer, sai uma medida de política nova. Mas saber quais são as implicações disso a prazo nas contas públicas é uma lotaria.

Os ministros das Finanças obrigam-vos a fazer noitadas?

(risos) Não são os ministros das finanças. É o calendário político. Na verdade, há aqui uma questão de fundo que precisa de ser melhorada no Parlamento português, que é uma melhor compatibilização entre o calendário político, o calendário da discussão e das votações, nomeadamente em sede de Orçamento de Estado, e o tempo para o trabalho dos técnicos.

Mas esse tempo também pode ser acelerado quando há mais recursos. Voltando à pergunta, a UTAO tem meios suficientes para desempenhar as suas funções?

Estou a escrever um documento, e não quero antecipar os resultados, que oportunamente tornaremos público, para suscitar um debate alargado, dentro e fora do Parlamento, entre dois pilares importantes que têm de ser compatibilizados: por um lado, é uma revisão do processo legislativo orçamental. Como é que a Assembleia da República se organiza para discutir e aprovar as propostas de Orçamento do Estado? Há dezenas de anos que é sempre da mesma maneira. Acho que é altura de se parar para pensar porque nós termos alterado vários aspetos do enquadramento das finanças públicas que dizem respeito à ação do Governo, mas é o que se tem feito ao fim das várias revisões da lei de enquadramento orçamental. No entanto, parámos à porta do Parlamento. E em segundo lugar, e articulado com isso, com as alterações que o poder político estiver disponível para introduzir no modo como os orçamentos do Estado são aprovados, repensarmos a estrutura da UTAO, a dimensão e as capacidades técnicas que tem de ter. Dou apenas aqui uma nota, o que é que está na génese histórica da instituição parlamentar? É o controlo do poder tributário dos Estados. Magna Carta, século XIII. Foi isso em larga medida que determinou a criação do Parlamento inglês. Pois bem, este é uma reserva de competência por excelência do Parlamento português, e bem. Agora, eu pergunto: quantas decisões em matéria fiscal não são tomadas naquela casa todos os anos, dentro e fora da época do Orçamento do Estado, sem a devida maturação técnica quanto às suas implicações, nos incentivos dados aos agentes económicos e nos impactos nas finanças públicas? É para esse debate que o documento que estou a escrever visa convocar opiniões dentro e fora do Parlamento.

A UTAO precisa de mais meios e de crescer?

A UTAO precisa de mais meios se o Parlamento entender que o trabalho da UTAO é útil e necessita de ser expandido. Por exemplo, para escrutinar melhor os impactos económico-orçamentais de medidas de política.

Como é que classifica a preparação dos deputados em geral para as questões orçamentais?

É uma pergunta difícil. É muito heterogénea. Temos pessoas na Comissão de Orçamento e Finanças com enorme experiência e traquejo nestas matérias e temos caloiros. Por outro lado, nem todos têm um domínio técnico minimamente, enfim, adequado para perceber as implicações de muitos diplomas.

Mas vão ter que ter.

Vão ter que ter e por isso também é que a UTAO existe para ajudar a suprir essas limitações. Talvez de todas as áreas de política que aquela casa cobre, e são todas, provavelmente a área económica e a área das finanças públicas são aquelas em que a política precisa de mais assessoramento técnico. O conhecimento no domínio das finanças públicas evoluiu de tal maneira nos últimos 15 anos, a linguagem tornou-se tão hermética, que é difícil para não eminenciados entrarem nela. E depois, tomar decisões sem estarem devidamente fundamentadas em ciência e conhecimento factual não é boa ideia.

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