Para Vasco Portugal, co-fundador e CEO da Sensei, “existem todas as condições para Portugal ser um país que cria tecnologia de ponta, que pode estar ao nível daquilo que melhor se faz. O que falta é garantir músculo financeiro e condições para sermos competitivos a nível global”. Há contudo ainda uma perceção, em alguns países, de que “tecnologia vinda de Portugal ainda é reconhecido como tecnologia e mão de obra barata e não necessariamente como tecnologia de ponta”. .A startup portuguesa Sensei anunciou esta semana a captação de 15 milhões de euros numa ronda de investimento, para consolidar a sua presença europeia. Já com 34 pontos de venda ativos autónomos em Portugal, para clientes como Sonae, Galp, Brisa/Colibri, NOS, e outros, a Sensei prevê a criação de mais mil pontos de venda autónomas nos países onde já tem presença e a entrada em novas geografias no centro e norte da Europa até 2026..O estudo “Economia Digital em 2024”, divulgado esta semana pela Associação de Economia Digital em Portugal (ACEPI), revela que 17% das empresas portuguesas já adotaram práticas de IA nas suas operações, um indicador que representa mais do dobro da média europeia. Atendendo à base tecnológica da Sensei, este número surpreende-o?.Não, a inteligência artificial é algo que já existe há muitos anos. Eu acho que o evento que aconteceu no ano passado é a massificação do próprio conceito. O que uma empresa como o Chart GPT fez bem – depois há um conjunto de outras empresas que lançaram outras soluções –, foi de alguma forma traduzir aquilo que é a tecnologia de inteligência artificial, que pode ter várias formas, para algo que consiga ser utilizado pelo utilizador mais comum. Eu próprio o utilizo, se calhar, para processar quantidades massivas de informação, ou, se calhar, como até um substituto ao Search da Google – às vezes é mais fácil a procurar [no ChatGPT] porque eu recebo a informação com mais qualidade e já tratada..Existem muitas barreiras à inovação e ao desenvolvimento de novas tecnologias em Portugal?.Eu diria que existem barreiras. As limitações de Portugal são inerentes à própria economia portuguesa e à condição geográfica do país. Somos um país pequeno, na economia não existe assim tanta liquidez, ou pelo menos quando comparamos com outras geografias, e aqui meto Portugal e a Europa no mesmo pacote. Quando olhamos para a Europa e olhamos para os Estados Unidos e para a Ásia, são dimensões completamente diferentes de entendimento daquilo que é a importância da tecnologia daqui para a frente, da inteligência artificial, e existe, efetivamente, uma estratégia a longo prazo e uma visão muito clara da importância que é, ao dia de hoje, investir em tecnologia porque será a tecnologia que define as nações e o poder destas mesmas nações daqui a alguns anos. Na Europa estamos atrás nesse aspeto e Portugal, pela natureza geográfica e pelo contexto onde está, também tem essas limitações. De resto, o talento não falta. Diz-se muito que em Portugal a forma de desenrascar é uma forma de estar, e acho que nós combinamos muito bem esta capacidade, muito talento que existe nas nossas universidades, depois com o contexto obriga-nos a ser, se calhar, às vezes um bocadinho mais criativos. Existem todas as condições para, efetivamente, Portugal ser um país que cria tecnologia de ponta, que pode estar ao nível daquilo que melhor se faz, o que falta é garantir músculo financeiro e condições para sermos competitivos a nível global..Quais são verdadeiramente as barreiras?.Se eu tivesse de sintetizar em duas, primeiro, liquidez, acesso a capital. É muito mais trabalhoso uma empresa conseguir, efetivamente, levantar capital, não necessariamente na fase inicial, mas naquelas fases em que é preciso dar o salto lá para fora e posicionar-se como uma empresa global. É difícil, porque implica, naturalmente, relações com fundos, criar essas relações numa base diária, e, naturalmente, se eu tiver que viajar até São Francisco ou tiver que viajar até Londres para criar essas relações, eu tenho uma desvantagem perante as pessoas que já lá estão. A outra limitação tem a ver muito com um trabalho que acho que tem melhorado imenso, mas em determinadas geografias, tecnologia vinda de Portugal ainda é reconhecido como tecnologia e mão de obra barata e não necessariamente como tecnologia de ponta. Isso é um trabalho que tem de se fazer, tal como Israel fez em tempos e tal como outras geografias fizeram em tempos. Acho que é importante nós começarmos a diferenciar-nos pela qualidade da engenharia, não necessariamente por sermos o talento mais económico..Isso é apenas uma questão de perceção?.Claramente uma questão de perceção. Noto que em algumas geografias tenho um desafio diferente em posicionar-me, por exemplo, contra concorrentes que vêm de geografias como Israel ou Estados Unidos, porque o simples facto de virem dessas geografias faz com que a perceção seja que a tecnologia é muito mais avançada..Somos subestimados nesse caso..Sim, diria que sim..Tocou dois pontos fundamentais; o primeiro tem a ver com recursos humanos. Vocês têm 70 colaboradores neste momento e com esta ronda de investimentos irão fazer crescer a equipa em 30%. Onde é que vão buscar esse talento e se em Portugal o conseguem fazer?.Acho que a Sensei – eu não conheço a realidade das outras empresas –, beneficia de duas coisas. Os fundadores conheceram-se no meio académico e são pessoas que têm alguma ligação às universidades. De alguma forma, isso facilita não só a ingressão de talento, mas também o reconhecimento de que efetivamente são as pessoas que necessitamos para resolver problemas muito específicos que existem na empresa..Significa que vão diretamente às universidades, é isso?.Não necessariamente. Nós fomos conhecendo um conjunto de gerações que já estão no mercado, que nos são recomendadas ou que nós próprios nos lembramos e vamos ter diretamente com a pessoa. Depois há outra componente [o segundo aspeto abordado na questão anterior], a empresa Sensei, especialmente na área da engenharia, é uma empresa que eu diria que é bastante atrativa. Nós temos desafios muito complexos de engenharia, a empresa no espetro da sua solução vai desde o hardware, ao software, à inteligência artificial, e não há assim tantas empresas a trabalhar com um espetro tão alargado e para uma pessoa que quer encontrar um contexto onde possa tocar em várias coisas e estar a trabalhar no estado da arte de algumas tecnologias, a Sensei é uma empresa bastante atrativa. Isso tem-nos facilitado na angariação desse talento..E os salários são competitivos face, por exemplo, aos norte-americanos?.São realidades muito diferentes. Nós não conseguimos ser naturalmente competitivos ao nível das melhores empresas dos Estados Unidos, mas somos uma empresa bastante competitiva para o padrão nacional..A segunda questão que quero colocar tem a ver justamente com a captação de financiamento, de investimento. Como é que tem sido convosco?.Olhando às rondas que levantámos, até temos tido sorte. Mas longe de ser fácil. Eu diria que todo o processo de montar a empresa e angariar o capital necessário é um trabalho muito pesado e é um trabalho muito desgastante. E há naturalmente um peso adicional por todos os fatores que eu acabei de referir. Conseguimos ultrapassar e conseguimos continuar a fazer o nosso percurso. Diria que poderia ser mais fácil. Não sei se toda a gente tem a mesma tenacidade que a nossa empresa, porque é preciso um espírito de sacrifício grande. Somos uma empresa que durou quatro anos sem atividade comercial, porque montar a tecnologia é de tal complexidade que é preciso ter confiança..Arriscaram a falência nesse período?.Claro. Numa empresa como a nossa, na prática, não há o conforto, ou pelo menos não chegámos a essa fase. Para lá caminhamos, é hoje mais tangível do que nunca. Mas o risco de sobrevivência existiu sempre desde o dia 1..A vossa ambição é estar, por exemplo, nos Estados Unidos?.Hoje temos, mas não podemos estar em todo lado. 15 milhões de euros é excelente para uma grande série A, mas não é suficiente para a empresa estar em todo lado. Neste momento, na análise que fizemos ao mercado, achámos que era demasiado arriscado ir para os Estados Unidos, pelo custo da própria geografia e pelo risco, estaria a competir ativamente com concorrentes meus. Na Europa nós somos, atualmente, o maior player de lojas autónomas, há um conjunto de vantagens que nos leva a acreditar que neste momento a estratégia da empresa é posicionar-nos enquanto líder dentro da Europa e depois, nessa fase, estaremos prontos para abraçar outras geografias. Sendo que, neste momento, também temos posicionamento na América Latina, até pela entrada do fundo [de investimento latino-americano] Kamay Ventures, que pertence à Coca-Cola e ao Grupo Arcor, que é extremamente estratégico, porque é indústria de retalho..A entrada desse fundo no vosso capital faz com que vocês também se estejam a preparar para, num futuro próximo, entrar no mercado norte-americano?.Sim. Numa primeira fase, estamos a apostar na América Latina – há uma escala suficiente para ser um mercado extremamente interessante para nós. A Kamay é um parceiro estratégico que, na prática, permite-nos monetizar e ir atrás de um mercado que, até agora, não tinha sido o nosso foco, que é a indústria de retalho. Nós trabalhamos, maioritariamente, com cadeias de retalho e retalhistas. Eles trouxeram-nos uma visão diferente da nossa proposta de valor que nós adicionamos também às marcas..Como é que o retalho olha para uma inovação tecnológica? Ainda com alguma desconfiança?.Lá está, na história das empresas tudo tem fases. As lojas autónomas foram introduzidas, com maior visibilidade, quando foi o lançamento da Amazon Go e todos os nossos concorrentes trabalham numa ótica, e nós próprios, quando lançámos a primeira loja cá em Lisboa, de o cliente para entrar na loja tem de ter uma aplicação instalada e essa aplicação tem um cartão de crédito, tal como quando usa o Uber. Para entrar no Uber, eu tenho de ter uma aplicação, tenho de ter uma forma de pagamento e, depois, é-me cobrado quando eu saio. A lógica era relativamente assim: o cliente entrava, tinha uma aplicação, passava o QR Code para lhe dar acesso e, depois, saia e era-lhe cobrado na aplicação. Isto só era viável desta forma porque a tecnologia que nós usamos é a visão computacional e temos múltiplas câmaras no espaço a traduzir frames de vídeo em dados e, depois, desses dado se inferem e são os cestos [de compras] que nós depois cobramos. Era literalmente impossível fazermos isto em tempo real. Isto foi em final de 2022. Nós ao conseguimos fazer isto em tempo real mudou fundamentalmente a nossa experiência, ao ponto de, ao dia de hoje, o cliente não ter barreiras à entrada [do ponto de venda], coisa que irá encontrar em qualquer outra loja. No final, ele vai encontrar um terminal que, magicamente, lhe vai aparecer o valor das compras que ele tem a pagar, com cartão, com dinheiro, com o que quiser. Todo este processo, que é um conjunto de minutos, multiplicado pelas centenas de pessoas ou milhares de pessoas que estão a comprar neste preciso minuto, é muito tempo que nós estamos a recuperar para a humanidade e queremos acreditar que isso, efetivamente, tem um impacto muito grande na vida das pessoas e, naturalmente, também na indústria..No retalho, esta automatização permite um controlo maior sobre o produto, sobre a gestão de stocks e fluxos de compra de produtos….Exato. Falo muito da experiência do cliente final porque, para o público geral, é o impacto que eles veem. Mas por default, para oferecer o cesto de cada cliente, eu tenho que saber tudo o que se está a passar na loja. Isto é, fazemos o tracking de cada produto individual que está a empratelar. Sei exatamente qual é o stock, sei a rotação do stock, sei o que é que está a acontecer em determinada categoria e sei a jornada de cada cliente individual, de forma anónima. Esses dados, o conceito de retalho autónomo, que é o que a insenção faz, é exatamente isto..E qual é que é a margem ainda de digitalização do setor do retalho?.O retalho foi um descrente de tecnologia até, provavelmente, há quatro anos em que, efetivamente, sentiu que houve um impacto maior no período de Covid, onde eles tiveram um papel fundamental. Hoje está presente para qualquer retalhista que têm de ser também empresas tecnológicas. Qualquer outra indústria tem que pensar desta forma, mas os retalhistas principalmente. E há uma aposta muito mais séria hoje em dia na digitalização, sendo que o ponto de partida está tão atrás, porque durante tanto tempo não houve tanto incentivo a fazer essa transformação, que neste momento, eu acho que estamos num momento-chave de transformação, porque depois há um conjunto de fatores. É naturalmente um negócio de volume, com margens muito pequenas, a inflação, mais concorrentes a competir por regiões mais próximas, vão tirar share. Se dependem do volume, isso obviamente impacta. E depois por trás ainda tens a inflação e depois terás uma componente promocional, etc. É toda uma indústria que vai ter de se reinventar, porque há aqui um conjunto de princípios básicos que não se vão alterar, as margens vão continuar a ficar mais baixas, o custo da operar vai ficar cada vez mais alto e neste momento o que está a acontecer na indústria é que todos estão a procurar perceber o que é o retalho do futuro..E o que é que o retalho do futuro?.Ouço sempre as pessoas a perguntarem muito sobre o digital e o físico, o offline e o online. Acho que o futuro do retalho é um bocadinho disto tudo. É mais omnicanal, porque na verdade, primeiro, o retalho não tem um target, a minha avó vai ao supermercado, tal como eu vou e tal como todos vamos, e dependendo do contexto, temos formas diferentes de consumir. Se eu estiver aqui e precisar de uma água, não vou encomendar online e esperar que chegue amanhã. Vou ter de a ter aqui convenientemente. Se eu precisar de alguma coisa para o jantar, preciso de ir lá abaixo e ter já, não vou estar a esperar que chegue horas depois. Mas se eu estiver a preencher a minha despensa da semana, o online provavelmente fará muito sentido. E depois há a parte mais do last mile e da proximidade: não há grande fidelização relacionada às marcas de supermercado, tens as tuas preferências, mas por norma, quando mudas de casa, o supermercado que está mais perto é aquele a que ficas fiel, porque é uma questão de conveniência. Então, o que começa a acontecer é perceber como é que o retalho pode ser mais conveniente e como é que podemos trazer o retalho mais próximo da pessoa e mais próximo do teu contexto. Acho que esse é que é o elemento vencedor. Se tu fores olhar para as nossas soluções, nós naturalmente temos as lojas de supermercado, mas depois temos a desmultiplicação da nossa tecnologia para trazer a loja para o teu espaço, para dentro de uma empresa, para dentro do teu espaço social, para dentro do teu ginásio. Onde quiseres eu posso criar um ponto de venda com um custo operacional bastante competitivo e na prática com uma vantagem abismal: crias a extrema conveniência para o cliente final, porque se tu tens aqui um ponto de venda que te oferece aquilo que necessitas a cinco minutos ou cinco metros de distância, é ali que vais consumir..E a privacidade de dados? Com tanta tecnologia e com tanta monitorização de todo este movimento que o cliente faz dentro de uma loja, como é que é assegurada a privacidade?.Aí é uma combinação entre aquilo que é a nossa tecnologia, uma tecnologia que usa câmaras, apesar de não as utilizarmos como câmaras, utilizamos como sensores, e a própria indústria, o retalho, como eu disse, sempre foi menos recetiva à introdução da tecnologia, isto faz com que desde o dia 1 nós tivéssemos que ter essa preocupação. Naturalmente essas discussões à volta de segurança e de privacidade são temas fundamentais. Desde o primeiro dia que nós tivemos sempre essa preocupação, toda a tecnologia está montada de forma a eu não conseguir, minimamente, saber quem é o cliente final, não há nenhum tipo de dado biométrico que esteja a capturar por via da nossa tecnologia. Todas as pessoas que estão na loja são anónimas e, se voltarem, não tenho possibilidade de saber que é a mesma pessoa, a menos que ela se registasse de alguma forma e se identifique perante o sistema. E se ela o fizer, está a identificar-se perante o retalhista e não perante mim..Vocês têm uma proposta de abertura de mil lojas 100% autónomas, como é que isso vai ser possível, até 2026? Falamos de lojas de rua ou também daquelas que ainda há pouco falava que podem estar dentro de um espaço social?.Nós dissemos mil pontos de venda nos próximos dois anos. E ponto de venda, atenção, é o denominador comum, porque temos vários formatos diferentes, desde os micro mercados – só neste escritório eu posso colocar aqui vinte, dependendo do que é a análise de consumo que se possa fazer. É um misto entre aquilo que são os micro pontos de venda e os supermercados, multiplicado pelas geografias onde nós estamos a querer entrar na Europa, nesta fase..Exatamente, isto é distribuído por vários países?.Sim. Na Europa, em particular, estamos a trabalhar atualmente Portugal, Espanha, França e Itália. Nós posicionamo-nos um bocadinho com um player periférico, estamos muito focados no sul da Europa. E agora, nesta fase da empresa, queremos desconstruir isto e posicionar-nos nas geografias centrais da Europa. Naturalmente, Benelux, UK, Norte da Europa, são geografias interessantes, que têm players e cadeias de retalho globais muito grandes..A maior loja 100% autónoma também é uma das vossas ambições, onde é que ela vai ser? .Na altura certa depois logo partilhamos..Mas pode ser em Portugal?.Pode ser no mundo inteiro, pode ser em qualquer lugar, dentro daquilo que é o nosso go-to-market.