SNS: assim não.

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Nesta crónica abordo a minha perceção sobre a trajetória recente do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que, no fundo, é extensível à generalidade dos serviços públicos.

Sem reformas, tem prevalecido a gestão conjuntural do dia-a-dia e cortes cegos sem atender ao respetivo impacto estrutural. Em desespero perante o caos atual, há agora a disponibilidade para gastos adicionais, mas, de novo, visando responder ao momento e sem atender aos efeitos duradouros do eventual despejo de recursos adicionais.

No contexto de má governança, as desigualdades ao nível dos serviços de saúde são progressiva e consistentemente maiores que as observadas na generalidade dos países da União Europeia. Acresce que estão intimamente associadas à geografia, ao rendimento e à literacia dos cidadãos em saúde. À sua maneira, todos os cidadãos procuram contornar a falta de respostas do SNS, pelo que, em última análise, são os mais vulneráveis quem mais sofre e, sendo assim, há deturpação da finalidade e da missão do SNS em prestar cuidados de saúde de forma geral, universal e tendencialmente gratuita, a toda a população.

O estado atual do SNS parece revelar que a aliança entre economia de mercado, Estado-providência e democracia, que fundou o projeto de Estado-nação pós-25 de abril e que nos permitiu aceder ao processo de integração europeia em 1986, está a desfazer-se com um governo PS de maioria absoluta.

As cativações dos ministros Centeno e Leão, sem um programa de reformas estruturado baseado numa hierarquia de necessidades, traduziram-se em cortes de despesa sem atenção ao impacto estrutural. Quando deveria haver uma reorganização da rede hospitalar nacional com a participação das instituições, dos seus funcionários e profissionais nos processos de conceção e implementação, assistiu-se à crescente centralização das decisões e ao progressivo agravamento do sistema.

A decadência do SNS foi-se manifestando nos longos tempos de espera pelos serviços, na redução do co-pagamento de medicamentos, nas dificuldades no acesso a produtos farmacêuticos inovadores e no agravamento da mortalidade. Mas também se foi manifestando na deterioração das condições globais de trabalho que foram diminuindo a produtividade e levando à emigração de muitos profissionais, à reforma antecipada de outros com longas carreiras e, ainda, ao deslocamento de um número considerável de outros para o sector privado.

Na sequência das 35 horas de trabalho semanais, é certo que o número de profissionais a trabalhar no SNS aumentou, aumentando a despesa. Porém, esse aumento de custos foi compensado com desinvestimento noutras componentes e o resultado foi a degradação do sistema, refletido na quebra abrupta da produtividade. O retrocesso observado passou a ser ocultado com argumentos do tipo "maior racionalização dos serviços" e "cumprimento de normas internacionais".

A trajetória observada é uma das maiores ameaças ao sistema de saúde pública. Prejudica a confiança dos cidadãos e aumenta a sua insatisfação. Estes, face à natural preocupação com uma área tão sensível, foram naturalmente optando pelas alternativas privadas. Tem, pois, sido a ineficiência do SNS a alimentar o crescimento do sector privado, porque os cidadãos não encontram no sector público resposta para as suas necessidades.

Atualmente, cerca de cinco milhões de portugueses possuem seguros de saúde privados ou um subsistema de saúde e recorrem generalizadamente ao sector privado, situação que tem registado um crescimento crescente nos anos mais recentes. Sendo os cidadãos racionais, o pagamento de seguros de saúde, quando a Constituição garante a prestação gratuita, só pode ser naturalmente motivada pela falta de resposta do SNS.

A contenção de custos e o declínio da qualidade dos serviços públicos permite-nos, pois, classificar os três últimos governos PS - orientados pelo princípio de "não mudar nada" - como os maiores patrocinadores das alternativas oferecidas pelo sector privado. O PS (e o governo) acabam por penalizar aqueles que dizem defender. Parece até poder dizer-se que, indiretamente, o governo se reprova e confia cada vez mais aos grandes oligopólios de saúde do sector privado a responsabilidade dos respetivos serviços.

Neste contexto, o SNS em vez de, como esperado, crescer e ganhar cada vez mais autonomia na prestação de serviços tem vindo a tornar-se cada vez mais dependente da prestação privada.

Quando o seu objetivo passava por contribuir para minimizar as desigualdades, proteger as pessoas mais vulneráveis, e melhorar o bem-estar de todos os cidadãos, cumprindo-se a Constituição, eis que o PS (e o governo) nos tem oferecido precisamente o contrário.

Óscar Afonso, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade do Porto e sócio fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF)

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