«Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade» (Albert Einstein).A Neuralink, um dos muitos projectos do imparável Elon Musk, fornece esperança a quem padece de condições neurológicas graves, através da investigação e desenvolvimento de implantes cerebrais (interfaces entre o cérebro humano e a máquina ou ICMS). Foi nesse sentido que foi revelado há uns dias que a Neuralink tinha colocado um implante, denominado «Telepathy», num ser humano, implante esse que interpreta actividade neural, permitindo o controlo de dispositivos externos (como smartphones ou computadores) por meio de sinais cerebrais (Scientific American). Tal abordagem, em paralelo com técnicas de estimulação da medula espinhal, visa restaurar funções motoras..O desígnio de Elon Musk não se circunscreve, contudo, à vertente terapêutica das ICMs, almejando, sobretudo, ao aprimoramento cognitivo do ser humano no âmbito de uma visão que evoca noções distópicas que habitam, usualmente, o reino da ficção científica..Com efeito, o sonho de Musk passa, nas suas palavras, pela criação de um «dispositivo para a população em geral», que conecte diretamente a mente humana a supercomputadores, no âmbito de um cenário em que a Neuralink surge como um «backup para o ser não físico, para a alma digital» (MIT Technology Review)..A meta transumanista de Elon Musk intriga e inquieta. O aprimoramento humano não incide no tratamento da patologia, não se propõe restabelecer a saúde e sim intervir no corpo de um ser humano saudável, aperfeiçoando-o, «deixando-o melhor que antes» (N. Bosttrom, Uma história del pensamento transhumanista)..Neste enquadramento conceptual, o ser humano é encarado como obsoleto no seu estado natural, devendo ser aprimorado por via tecnológica para aquisição de capacidades físicas e/ou cognitivas superiores. A meta é a fusão entre o ser pós-humano e a máquina, a transcendência do humanismo e a criação de uma nova humanidade..Não surpreenderá que o aprimoramento humano requerido para alcance do estágio pós-humano, transformando a condição humana, suscite inúmeras questões..Por exemplo, (i) mesclar o ser humano com a máquina poderá, desde logo, modificar a percepção do «eu», bem como o conceito de «humanidade», (ii) o acesso a técnicas e procedimentos tecnológicos que aperfeiçoam o indivíduo se for limitado a certas classes sociais poderá acentuar discrepâncias socioeconômicas, (iii) a possibilidade de as ICMs terem acesso a informações sensíveis que residem no cérebro humano poderá gerar riscos no que toca à salvaguarda dessas informações e à preservação da liberdade cognitiva, da privacidade mental, da integridade mental e de outros direitos e (iv) não podemos esquecer os riscos inerentes ao uso potencial de ICMs para fins militares, de vigilância e de defesa..Ou seja, embora Elon Musk advogue o transumanismo como método para, entre outras coisas, garantir a sobrevivência humana perante os inevitáveis avanços da Inteligência Artificial (All Tech Magazine), paradoxalmente a solução que avança põe em causa a permanência da essência humana..Neste quadro, entidades como a Neurorights Foundation defendem o desenvolvimento ético da neurotecnologia, elencando um conjunto de direitos cuja preservação consideram necessária, como, por exemplo, o direito à liberdade de pensamento, ao livre-arbítrio e à privacidade de foro mental..Os chamados «neurodireitos» surgem como imperativo claro, sendo definidos como «os princípios éticos, legais, sociais ou naturais de liberdade ou titularidade relacionados ao domínio cerebral e mental de uma pessoa; isto é, regras normativas fundamentais para a proteção e preservação do cérebro e da mente humana» (M. Ienca, On Neurorights)..Navegar esta deeptech requer grande cautela. Há que resguardar o equilíbrio entre as possibilidades técnicas e as múltiplas questões filosóficas, éticas e normativas emergentes, evitando «que a humanidade caia naquilo que os antigos gregos chamavam de hybris, a arrogância e o descomedimento, fixando limites para o homem prometeico» (L. Ferry, A revolução transumanista). Resta ao Direito caminhar a nível nacional, regional e global neste sentido..(Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico).Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria (www.gpi-ipo.com)